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Zaza, mon amour

As inseparáveis, romance de Simone de Beauvoir, revela os efeitos fatais da moralidade religiosa para a autonomia das mulheres
POR Juliana Diniz

As inseparáveis’, romance de Simone de Beauvoir, revela os efeitos fatais da moralidade religiosa para a autonomia das mulheres

Juliana Diniz
julianacdcampos@gmail.com

É difícil imaginar Simone de Beauvoir atemorizada pela severidade de Deus. Há décadas, sua imagem personifica no imaginário coletivo a caricatura da feminista aguerrida, indiferente a dogmas ou ritos, combatente e ruidosa. 

Embora tenha participado de muitos atos públicos e defendido uma agenda política em favor da autonomia feminina, Beauvoir não concentrou sua potência na performance midiática do grito. Basta olharmos com atenção a gestualidade discreta com que se dedica a responder os poucos entrevistadores que puderam recebê-la na televisão. Embora sua língua seja impiedosamente cortante, não há ali excessos expressivos – mesmo os turbantes que se tornaram sua marca registrada são usados sem grande afetação.

Embora já gozasse de notoriedade em boa parte dos países ocidentais desde a década de 50 do século XX, Simone de Beauvoir permanecerá arredia às novas mídias até a velhice: apareceu pouco na TV, deu esparsas entrevistas no rádio, e suas fotografias estão sempre envoltas numa certa atmosfera de intimismo e mistério, como se a imagem não a captasse inteiramente. É na palavra escrita, no registro impresso, que Beauvoir se concentrará com maior fôlego. 

Quando nos ambientamos no emaranhado de páginas que ela deixou, percebemos que a autora está mais próxima da figura de uma trabalhadora intelectual dedicada, talhada por uma rígida disciplina e protegida das distrações, zelando por sua rotina de constâncias e renúncias. Mesmo que tenha vivido intensamente, viajado como poucos e oferecido muito tempo aos seus amantes, Beauvoir nunca perdeu o foco daquilo que a motivava: o ofício da escrita.

Seus livros são extensos, demandam fôlego. Não porque sua linguagem seja hermética ou exaustiva. Ao contrário, são bem escritos em estrutura objetiva, com características analíticas muito reveladoras. É com essa língua forjada no curso de filosofia da Sorbonne que Beauvoir esmiúça contradições, argumentos e perfis de pessoas e ideias. São livros exigentes porque nos chamam à reflexão constante, como se estivéssemos o tempo inteiro em confronto. Não se espere arrebatamentos e floreios: a pensadora francesa nunca foi dada a lirismos. 

Escrever O Segundo Sexo, ensaio sobre a condição feminina, em pleno pós-guerra, foi seu desafio social mais exigente. Não lhe agradava o status de filósofa, mas o fato é que em sua obra mais famosa não encontramos a Simone romancista, mas a estudiosa de Hegel, Marx e Husserl. Admitir publicamente o que pensava sobre o eterno feminino revela o desapego ao cânone em que foi educada e a coragem para desagradar aliados como o escritor Albert Camus ou os companheiros de partido e ideologia. Foi quando passou a ser, para além da intelectual, uma figura pública suscetível a toda sorte de calúnias e idealizações.

Quando pensamos em toda essa disposição de enfrentamento, nos parece improvável que Beauvoir tenha, em algum momento da vida, sentido intimidade com a fé e se acomodado aos rígidos códigos de comportamento da religião. É mais fácil para nós, que tantas vezes caímos na tentação de fantasiar o feminismo, imaginar a coragem de Simone de Beauvoir como o resultado inevitável de uma vida desde cedo escancarada para a liberdade, como se a filósofa fosse resultado de uma instrução liberal, ou, quem sabe, agraciada por ter nascido numa família de pais permissivos e complacentes. 

Sabemos, contudo, que não foi bem assim. Que, embora tenha sido amada e bem cuidada por um pai amoroso e uma mãe diligente, Beauvoir foi educada para a devoção, preparada nos corredores do Instituto Adeline Désir para um futuro resignado de mulher casada. 

Ela sabe que os aspectos contingentes de sua trajetória se combinaram para resultar na força de caráter que é o alicerce de sua atitude de contestação. Apesar disso, considerando a influência que têm a escola, a igreja e a família sobre nossa identidade, sempre poderemos nos perguntar como esse Deus tão vigilante deixou escapar de suas mãos a mulher que, no futuro, questionaria as normas da fé. 

O fato é que, como revela em Memórias de uma moça bem comportada, em algum momento Simone percebeu que Deus estava morto, e essa descoberta foi experimentada com alívio. Foi sua autorização para questionar, dentro de limites diplomáticos arbitrados pelo pai, a resistência de Françoise, a mãe conservadora e devota.

Beauvoir foi generosa conosco. Nunca negou suas contradições e, respeitando um dever de cumplicidade, se dedicou ao exercício de detalhar como se transformou na mulher adulta que foi. Não é por outra razão que a autobiografia é um gênero tão genuinamente seu, mesmo quando não parece estar fazendo autobiografia. Tudo, em Beauvoir, se situa no território fluido da escritura autobiográfica.

É o que acontece com As inseparáveis, livro da autora publicado no Brasil pela Editora Record neste confuso ano de 2021. Escrito em 1954, o romance traz confissões sutis sobre um capítulo fundamental de sua formação: a tomada de consciência do arrebatamento amoroso de Beauvoir por Élisabeth Lacoin, a Zaza, e a compreensão dos efeitos fatais dos costumes sobre as personalidades femininas mais indóceis. 

Sabemos, por Simone, que Zaza tinha inteligência e vivacidade extraordinárias, e que morreu muito jovem, de causas nunca amplamente esclarecidas, assim como Andrée, a protagonista de seu romance. Simone atribuiu o resultado trágico da morte de Zaza ao ambiente de sufocamento familiar a que a amiga era recolhida e que não pôde confrontar por obediência ao dever. 

Se, nos volumes de sua autobiografia, a questão da fé aparece em lampejos breves, nunca explorados a fundo, em As inseparáveis, somos convidados a entender a autoridade que a fé desempenhou em uma parte importante de sua vida. A morte da amiga transformou a inconformação pela perda em ressentimento com tudo que família tradicional representava até então.

Deus é um personagem onipresente na obra. É sua força julgadora que leva Andrée, a personagem que corresponderia a Zaza, a obedecer resignadamente ao controle da mãe, que a conduz com severidade para o destino social que, mais tarde, Simone de Beauvoir detalhará em O Segundo Sexo. Essa mãe insensível, que tudo quer saber e que frustra, sem piedade, as aventuras amorosas de Andrée, é antes um instrumento da moral católica personificada em deveres sociais, compromissos familiares e exigências de racionalização. 

Não deixa de ser fascinante perceber como a narradora transforma sua percepção sobre essa figura ao longo do romance. A sra. Gallard decai aos olhos de Sylvie à medida que apresenta à narradora a interdição de seu desejo.

Desejo e dever são sempre inconciliáveis e, mesmo diante de um pretendente que possa atender às exigências, a mãe de Andrée desconfia dos riscos de um casamento entre duas pessoas apaixonadas. Devoto, bem nascido, conforme, Pascal é um marido potencial e tem, aos olhos de Andrée, um atributo salvador: ele a agrada. Ela não tem forças para recusar o dever de casamento, mas ainda imagina que é possível, ao contrário das irmãs, ser casada, apaixonada e feliz. A extravagância, contudo, parece à sua mãe tola demais para ser levada a sério: se o romance entre Andrée e Pascal não é impedido, tampouco é estimulado. 

Sylvie, a narradora e alterego de Simone de Beauvoir, experimenta a liberdades que Andrée não tem; entre elas, a de se apaixonar sem maiores riscos. É sua amiga o primeiro objeto de seu arrebatamento: “Uma criatura humana é tão pouca coisa comparada a Deus. No entanto, é verdade que outrora eu tinha amado ao mesmo tempo Andrée e Deus, com grandíssimo amor.” 

Para Andrée, que padece com a vigilância terrível a mãe, a fé será uma companhia contraditória que a todo momento alternará conforto existencial e exigências duras de fidelidade. O contraste de Andrée com a narradora é evidente: “as coisas teriam sido mais simples se ela, como eu, tivesse perdido a fé assim que a fé perdera a ingenuidade”.  

Andrée permanece devota e se ressente da falta de misericórdia deste Deus onipresente. Pergunta-se: por que Deus não nos diz claramente o que quer de nós? Por que, afinal, Deus a criou tão talhada para o desejo e para o pecado?

A personagem acaba aniquilada por sua própria fragilidade. Proporcional ao seu desejo de vida é sua incapacidade de afastar a força do dogma. Presa na contradição entre desejo e dever, assume comportamentos destrutivos, mutila-se com um machado para evitar obrigações maçantes impostas pela mãe, adoece ante a perspectiva de exilar-se em terra distante. Andrée é cativa.

O destino da amiga é entendido como um alerta e será o embrião para um projeto que só ocorrerá décadas mais tarde, quando a filósofa traçar o diagnóstico da condição feminina. Escreve, em A força da idade: “por certo solucei, desesperei-me, revoltei-me, mas foi mais tarde, insidiosamente, eu a mágoa abriu seu caminho em mim. Nesse outono meu passado dormia; eu pertencia por inteira ao presente”.

 Sylvie, assim como a jovem Beauvoir, entende que é preciso renunciar ao Deus implacavelmente vigilante para conquistar a si mesma. Para deixar dormir o passado e pertencer ao presente. Só essa coragem pode afastar de si o destino trágico da amiga, só assim Sylvie/Simone deixará de ver a imagem de seu futuro, imóvel no caixão, “sufocada por toda aquela brancura”.

Juliana Diniz é editora executiva do Bemdito, professora da UFC e doutora em Direito pela USP. Está no Instagram e Twitter.

Juliana Diniz

Editora executiva do Bemdito. É professora do curso de Direito da UFC e Doutora em Direito pela USP, além de escritora. Publicou, entre outras obras, o romance Memória dos Ossos.