Bemdito

O que o punk me ensinou sobre tempos difíceis

Nascido de uma juventude desiludida, o punk lembra que a dor não deve ser reprimida e que os adultos não vão nos salvar de nossas rachaduras
POR Camille C. Branco

Nascido de uma juventude desiludida, o punk lembra que a dor não deve ser reprimida e que os adultos não vão nos salvar de nossas rachaduras

Camille Castelo Branco
camillecastelobranco@gmail.com

“Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos; aquela foi a idade da sabedoria, foi a idade da insensatez, foi a época da crença, foi a época da descrença, foi a estação da Luz, a estação das Trevas, a primavera da esperança, o inverno do desespero; tínhamos tudo diante de nós, tínhamos nada diante de nós, íamos todos direto para o Paraíso, íamos todos direto no sentido contrário.”.

(Charles Dickens, Um conto de duas cidades)

Só agora, depois de adulta, ocorre-me que esta deveria ser uma cena estranha: eu, ainda uma menina em idade escolar, parecendo saída de um texto da segunda geração do romantismo – pálida, cabelos muito escuros, pulmões ruins – segurando, sentada em um dos bancos do colégio, um exemplar de capa laranja neon de um livro intitulado Mate-me por favor. Suponho que a fama de boa aluna, o fato de se tratar de uma adolescente segurando um livro e o meu aspecto inofensivo tenham sido suficientes para evitar preocupação maior dos inspetores e coordenadores.

Mas, apesar do título mórbido, o livro continha um tesouro eletrizante para a menina que eu era: a história oral do punk, contada pela boca de todos os meus ídolos. Lou Reed, Iggy Pop, Nico, Debbie Harry, Patti Smith falavam em primeira mão sobre como foi participar da criação de um fenômeno artístico que mudaria o mundo.

Apenas três acordes, um vocalista com a veia saltando no pescoço ou sussurrando quase entediado no microfone, nenhum virtuosismo sonoro, e um coração ameaçando sair pela boca. Abaixo, uma plateia de gente correndo em círculos, suando, empurrando-se, na busca por sentir alguma coisa. Você pode odiar o punk, você pode adorá-lo, mas dificilmente se sentirá indiferente a este tipo de espaço emocional.

Nascido espontaneamente pelas mãos de uma juventude desiludida de grandes promessas de paz e felicidade e desapontada com as autoridades, o punk propunha algo tão simples, quanto revolucionário: pegue seu instrumento, grampeie folhas de papel com seus poemas e desenhos, rasgue, customize suas roupas e faça você mesmo. Porque ninguém vai vir te salvar. Os adultos te enganaram. Não existe redenção, nem messias, então comece a correr.

Toda vez que penso nesses vagabundos iluminados que foram meus heróis, me volta à mente quase intuitivamente o começo do longuíssimo Uivo, poema de Allen Ginsberg recitado pela primeira vez em um bar imundo, pra um séquito de bêbados. Ginsberg faz o que quer com a linguagem, sempre fez, e começa assim: “Eu vi as melhores cabeças da minha geração destruídas pela loucura. Famélicos, histéricos, nus. Se arrastando pelas ruas do bairro negro ao amanhecer na fissura de um pico”.

As metáforas sujas e radiantes parecem capturar bem as experiências terríveis vividas pelos artistas que eu tanto admirava. Lou Reed, aos 17 anos, submetido à eletrochoques e internado em manicômios por ser homossexual. Robert Mapplethorpe, um dos melhores fotógrafos de que tenho notícia, definhando de aids. Patti Smith passando fome em apartamentos caindo aos pedaços e vendo seus amigos sucumbirem ao vício. Não eram tempos simples.

E, ainda assim, algo violento, magoado, cínico, niilista, apaixonado brotou deste cenário devastado. As melhores cabeças de uma geração fizeram música prodigiosa, poemas luminosos, roupas que mudariam toda a concepção de indumentária nos anos posteriores. Fizeram tudo isso sem negar o componente de angústia, autodestruição e pulsão de morte, que fazem parte do que é humano, mas recusando e se insurgindo contra a tutela, a tirania, a repressão sexual, a higienização das sarjetas.

Abraçando sem medo a atração pelo abismo, Lou Reed convida, em um sibilar sensual, o ouvinte a caminhar com ele pelo lado selvagem. Patti Smith canta em seu Horses que Jesus morreu pelos pecados de alguém, mas não pelos dela. Mais tarde, ela escreveria, em seu livro de memórias, que Jesus era alguém contra quem valia à pena se rebelar, porque ele próprio era pura revolução.

Aspectos desta estética e desta poética me parecem particularmente urgentes neste que é o tempo da peste e do fortalecimento de um das faces mais brutais que já conheci do neoliberalismo. Nunca na vida fui tão bombardeada pela retórica coaching, que torna a felicidade um material compulsório e, como é próprio de uma dicção mercadológica, um fruto exclusivo do esforço individual. Se você se sente miserável, se levantar da cama está difícil, se os lutos estão insuportáveis, problema seu, é tudo questão de mudar o seu mindset. Compre um curso online. Baixe esse aplicativo. Faça um exercício. Coma uma folha de alface e tome um suco verde. Siga esse influencer. Mal-estar é coisa de fracassado.

A força criadora do punk caminha no sentido oposto. Sua carga expressiva não surge apesar do sofrimento, mas de dentro dele. Os estados de esgotamento radical, de cansaço, de colapso são submetidos a altas temperaturas e convertidos em poesia, em canções, em performances nascidas por causa do pior. Desse testemunho do mal, centenas, milhares de pessoas encontram não a solução para seu sofrimento, mas algo que talvez seja muito mais poderoso do que qualquer discurso salvacionista: identificação. A sensação de que você não está sofrendo sozinho. A confirmação de que sua vergonha, sua falta de pertencimento, seus êxitos malogrados, suas desilusões são parte de uma experiência maior do que você. E que delas pode até mesmo nascer um tipo difícil de beleza.

A mesma Patti Smith reflete, em seu Devoção, sobre o que move as pessoas em direção à escrita. Ela afirma: “Precisamos escrever enfrentando miríades de lutas, como quem domestica um potro voluntarioso. Qual o sonho? Escrever algo bom, que fosse melhor do que eu sou, e que justificasse minhas tribulações e indiscrições. Por que escrevemos? Irrompe um coro. Porque não podemos somente viver.”.

Nada nessa passagem sugere que continuar abrindo a boca ou preenchendo folhas em branco seja coisa simples, ainda mais num tempo como este. Mas também há nela um convite em direção a algo para além da mera vida, para tomar de empréstimo a expressão de Walter Benjamin. Para continuar indo em busca do sentido, sem fechar os olhos para as partes trágicas desta busca.

Agora, eu não posso mais escutar os músicos que amo incendiando a plateia em um show. Não posso mais me sentar no sofá das salas dos meus amigos e ler poemas em voz alta para que eles escutem. Meus coturnos estão guardados desde o ano passado, os cadarços juntando poeira. Leio Uivo dentro do quarto, para me sentir viva. Há dias em que um estado absolutamente modorrento de derrota se abate sobre mim.

E, ainda assim, na madrugada de ontem, conversava por mensagem com a Saada, uma amiga a quem amo muito, uma punk inconformada de inteligência extraordinária, de quem a saudade me dói todos os dias. E ela me disse: “O mundo é muito feio e brutal e é como se não te encaixasses sendo essa porcelana com o coração enorme. Mas prometo que vais encaixar em muitos lugares, que a gente precisa de ti e vai cuidar pra que não quebres. Nem queiras quebrar, ainda que sejas tão delicada”. O amor conhece o que é verdade.

Quando adolescente, eu parecia uma espécie de estranho brinquedo falante, pulverizando palavras sobre minhas descobertas a respeito das partes difíceis e bonitas de se viver. Como adulta, isto mudou muito pouco. Continuo acreditando que não existe possibilidade de felicidade sem ousar dar uma olhada nas entranhas do mundo, que podem ser assustadoras.

Continuo acreditando, seguindo o legado dos punks antes de mim, que se algo vai muito mal, este algo não deve ser reprimido ou calado, e sim alardeado a plenos pulmões, mesmo que pareça incômodo. Talvez justamente por parecer incômodo. Continuo confirmando diariamente que a beleza surge dos lugares mais inesperados. E continuo acreditando que, se você está perdido em uma floresta assustadora e sombria e não encontra saída, você deve tentar fazer a luz entrar. E isso, lamento informar, só acontece quando você vai atrás das rachaduras.  

Camille C. Branco é antropóloga, pesquisadora e pode ser encontrada no Instagram.

Camille C. Branco

Antropóloga, doutoranda pela UFPA, desenvolve pesquisa sobre mobilização social na Amazônia, feminismos, corporalidades políticas e violência.