Bemdito

E minhas meninas subindo paredes

O vermelho-vestígio do sapato, uma marca da fricção corpo-matéria-superfície
POR Alice Dote

Há um ponto vermelho na ponta do sapato. Tem um centímetro de diâmetro o perfeitamente redondo pingo vermelho de fundo rosado no bico do pé esquerdo do All Star branco. Foi um dos poucos vestígios materiais do dia trazidos para casa. A blusa preta voltou como que intacta, e, embora as coxas descobertas exibissem pinceladas acidentais, os shorts jeans saíram quase ilesos. Nenhum salpico de tinta na roupa. Só a única gota encarnada no tênis. Eu vi quando ela pousou. Ainda lá está, são onze milímetros de diâmetro, na verdade. 

Agora é, sem dúvida, vermelha, mas, no dia, era de um rosa avermelhado. A última camada da gradual mistura entre vermelho e branco na bandeja aos meus pés. A primeira, em rosa claro, revelava o pigmento rubro com cautela e firmeza: daquele rosa não haveria volta. Nela sentia meu atrevimento, percebido mas sustentado durante os dias anteriores, em voltar assim à rua. E logo com esses corpos. Com essas meninas em algo mais que linhas. E logo com duas. O que fazer com a tinta no pincel? Comecei pelas coxas. Agachada.

A mão ensaiava um rumo, procurando reminiscência de um gesto apenas imaginado. Tateava sem tocar o curvo pedaço de parede na entrada do Beco dos Pintos. Do labirinto só cheguei à boca. Sentei-me ao batente que dá ao portão lateral da mercearia, onde, de vez em quando, alguém vinha lá de dentro — do beco, não da venda — para comprar algo ou deixar um recado. Dois metros para me expandir ao expandi-las.

Como deixá-las saltar do papel e tomar extensão? Como desdobrar manchas de nanquim em manchas de látex? Durante toda a semana, antes de dormir, tentava inutilmente antecipar os gestos que — no fundo, eu não tinha como não saber — só descobriria fazendo. Imagens do pensamento ansioso calculavam as fases de construção da imagem, sugeriam a ordem de aplicação das cores, chegavam a esboçar até o movimento das mãos. E eu não sabia que o caminho se faz ao caminhar? 

Caminhando o pincel. Subindo minhas meninas. Elas pedindo presença, a sua, mas também a minha: fazendo-se existirem e exigindo de mim estar presente. Em movimentos de extensão e de acúmulo, vejo-as sugerindo-se em membros, encorpando-se em camadas. Insinuam-se enquanto eu me insinuo sobre a parede: vamos tomando uma superfície outra, carregando a memória de habitar o papel. Que ingênua a pretensão de controlar o encontro, essa fricção corpo-matéria-superfície que gera o desenho. Esse corpo-a-corpo que é o desenhar. 

Por dias, pensei que apenas traduzi na parede o que fizera no papel. Que os gestos foram os mesmos — eu queria que fossem. Por outro lado, a impostora que vive em mim me dizia que a cidade nos convoca e provoca gestos outros, e ao teimar em usar o reboco como quem usa a fibra do papel, eu havia fugido de desenhar (n)a materialidade urbana. Mas não, não é bem isso o que faço com o nanquim. Não é bem assim que conduzo as cerdas macias do pincel na superfície horizontal e lisa sobre a mesa. Seria algo assim pintar uma tela? Eu não pinto, eu desenho. 

Alguém comentou que aquarelei uma parede. E nem aquarela eu ando querendo fazer. Só pensar em encher um pote com água e dispor pingos de cores no pires da cozinha já me agonia. Ando com preguiça da paciência exigida pela sucessão de tons aguados sobre o papel, uma paciente construção de imagem que desafia esse presentismo que vivo e me atormenta. Não o pleno gozo do presente, mas a urgência pelo instante seguinte, pela tarefa do futuro imediato cumprida, por adiantar o que der. Essa compulsão à ocupação. Como eu já pude reivindicar a ousadia de um outro exercício do tempo, a disponibilidade ao tropeço, o desvio à pausa, agora me escapa.

Me agonia o tempo das camadas de água no papel, mas me demoro numa volta danada para evitar a Via Expressa. 

Não sei como dizer isso sutilmente, então apenas digo: não quero deslizar com a aquarela, quero afundar o papel com as marcas da força do punho. Converso com o vazio, vezes com poucas, simultaneamente firmes e imprecisas, linhas, vezes com o prazer recém-descoberto em sujar sujar sujar. Dia desses, certa excitação me tomou quando, imprevistamente, o vermelho abandonou a figura e decidiu se expandir em direção às bordas da folha. Abdicar do fundo branco do papel, que bobagem: há tempos o desenho abdicou foi do papel. E eu ainda presa ao observado, mas não tem problema. É aqui que tenho sentido alguma presença no presente. Que tenho esquecido de mim ao me concentrar no risco que, mesmo brusco, veloz, rude — para uma mão suave e desconfiada e cheia de dedos —, não se nega ao movimento delicado de atenção. Rápido e impensado é o traço, não o olhar. (Meus) grandes olhos na tela. Ouço o atrito do risco.

Talvez o traço queira desacostumar-se de seu ancoradouro. É aqui, ao quebrar a ponta do lápis, que tenho lembrado que essa grafia através do desenho, essa grafia do desenho, é também, como a escrita, não só depósito de matéria numa superfície, mas tentativa de perfurá-la. As páginas de papel pólen ainda intocadas já estão marcadas com o revelo e até um pouco de pigmento do que veio antes. Rastros que atravessam folhas, atravessam dias, deixam-se ao que ainda vem.

Revisito meus últimos desenhos. Me detenho neles também na tentativa de penetrá-los. Talvez, na dificuldade em fazer devagar esteja tanto a possibilidade de presença como sua evitação: ali me encontro, mas só o bastante. Talvez, me inquiete também a beleza buscada nas suaves manchas coloridas da aquarela. O belo me atrai, me trai, e eu preciso de algo menos bonito. Aquelas linhas em rosa e em vermelho variando as indesculpáveis selfies, linhas um tanto constrangedoras em seu inacabamento, nas feições disformes que delineiam, na falta, como elas me aliviam. Preciso de algo que me conforte ao me oferecer, ao oferecer de mim, algum mínimo desconforto. Me detenho nesses desenhos um pouco mais: mas o que eu estou dizendo? Nada disso parece ser perceptível nessas imagens. Quem fala sou eu, não elas. E eu lembro dos nós tensionados entre as falanges dos dedos.

Tinta e tempo foi o que a parede me pediu. Por inexperiência minha ou ironia dos descaminhos, não conseguiria usar o pincel como quem usa lápis de cor. 

Que os gestos fossem os mesmos, eu queria. Numa fotografia, percebo que a mão que segura o pincel não é a mão que segura o lápis. Que imagem me ensinou a usá-lo assim? Os pés em pontas para evitar a escada, o braço erguido vencendo o ombro, o vai e vem entre a bandeja de tinta no chão e a parede. Um corpo sem cadeira. Uma outra coreografia com as linhas e as manchas e as meninas parece alargar um certo léxico de gestos do meu desenhar.

Se aquela imagem guarda os gestos de um corpo que desenha o percurso de um pensamento, o foi de um pensamento desviante do pensamento pensado. (Que todas as repetições sejam aceitas e perdoadas). É como se, para desenhar o desenho, eu tivesse que atravessá-lo. E, na travessia, tivesse que me fazer atravessar pelo que nele se transmutava para que pudesse ser outro: não o mesmo traduzido em outro “suporte”, mas outras marcas noutras superfícies segundo outros movimentos. Elas me inventaram gestos de presença, sem que eu percebesse então, pois já estava presente. 

E minhas meninas subindo paredes, que eu ando muito contida. Elas tinham sua própria temporalidade, seu próprio ritmo. Percorri os dois corpos repetidas vezes: quatro camadas, quatro vezes o mesmo caminho a adensar a superfície de pele, quatro tons de rosa a afoguear. Algo aconteceu aqui. São elas, sou eu nesse índice de passagem. Enquanto as levantava, coxas tronco seios pescoço cabelos, também me punha de pé. Só agora percebo: quando fui para a rua, repeti casas. O mesmo azul da porta do trezentos e seis. 

Quase esqueço que sou eu, de tanto que o risco desdobra e desdobra-se, embora ali me encontre. Nada mais autobiográfico. “Os contornos que alguém desenhou já não marcam o limite do que se viu, mas o limite daquilo que se tornou”, não é isso que diz John Berger? A tarde vai caindo e é preciso abandonar o desenho. Não tenho nenhum problema nisso: o preciosismo, ainda bem, não me consome. Me distancio: nessa imagem, nessa feitura, me encontro. E o choque e o alívio de me perceber tão outra.

Poderia, mas não quis limpar o vermelho-vestígio do sapato.

Alice Dote

Pesquisadora e artista visual, é mestre em Sociologia e co-criadora do coletivo Narrativas Possíveis, com pesquisa e atuação em cidade, imagem e artes urbanas.