E por trás de grandes mulheres, quem está?
“As ferramentas do Senhor nunca derrubarão a Casa Grande.”
Audre Lorde
Em Um teto todo seu, escrito em 1929, Virgínia Woolf narra sobre quando foi chamada a proferir a palestra As mulheres e a ficção e percebeu o seu redor, leia-se a Universidade, como um espaço propício apenas para homens. Suas notas são tomadas à beira de um rio que atravessa aquele lugar, quando é interrompida por um bedel avisando que ela não pode ali ficar. Tentou, então, entrar na biblioteca da instituição, mas foi também interditada porque precisava, naquela ocasião, estar acompanhada por um universitário ou mostrar uma folha de apresentação. E, dentre tantas questões advindas desse belo texto, ela reflete: como pode uma mulher ser escritora se ela sequer tem um espaço só para si, um quarto que seja todo seu, em que possa escrever livremente?
A autora pertencia ao círculo Bloomsbury, que se caracterizava pelo refinamento artístico, literário e político. Muito se sabe sobre a sua genialidade, seus posicionamentos revolucionários e lutas feministas, mas pouco se fala das suas misérias e contradições. Alicia Giménez Bartlett, em A casa de Virgínia W., se propõe a desvendar a questão, mediante uma frase da própria Woolf, em um de seus escritos: “Eu teria que escrever um romance sobre Nelly, a personagem. Toda a história entre nós duas, os esforços de Leonard e meus para nos livrarmos dela, as nossas reconciliações.”
Desafio aceito, Alicia Barlett criou narrativas, pesquisou fatos históricos e encontrou os diários de Nelly Boxall, “cozinheira e serviçal de Virgínia Wolf de 1916 a 1934, um amplo espaço para ir acumulando mágoas e sentimentos humanos que vão da admiração à inveja, do carinho à decepção, do respeito ao desprezo, da ternura à aversão, da gratidão ao ódio.”
Sim, as mulheres também são seres de ambiguidades e quando sobre elas se depositam lupas, por vezes, são bastante incoerentes! No livro mencionado, Alicia Bartlett, revela os diários escritos pela mulher que estava servindo os chás e limpando a casa de Virgínia, enquanto ela escrevia. Foi quando, certa noite, ao deitar para dormir com outra empregada da casa, num quarto escuro, úmido, de teto baixo quase cláustrofóbico e que dava para ouvir a respiração da outra, teve a ideia de imitar a “patroa”, escrevendo diários. Chegar ao ato de escrever também fez com que Nelly tensionasse esse lugar que a ilustre escritora reivindicava diariamente para si, numa espécie de contrapoder ou uma subversão da sua condição de existir. E escreveu: “Já não tenho a menor dúvida de que me odeia. O fato de eu ser independente e ter minhas próprias ideias a incomoda. Se eu compro uma blusa de cor parecida com a dela, me olha com desagrado, e também se eu faço algum comentário sobre a saúde ou aspectos de seus amigos.”
A questão de quem está por trás das mulheres, fazendo o trabalho doméstico para que as “patroas” saiam para trabalhar, foi assunto da pesquisadora Miliane Pinheiro, em banca recente que participei na UECE, sobre a trajetória de vida e envelhecimento de trabalhadoras domésticas negras e das classes populares, em Fortaleza. Ela aponta como essa categoria continua presente e é tão desprestigiada em seu trabalho, que tem sustentado toda a base dessa sociedade de origem patriarcal e racista na qual estamos inseridas. Revela ainda, a tradição desse tipo de trabalho no Brasil e suas origens:
“A presença da colonialidade do poder é notória desde os primeiros séculos de formação do Brasil, em que o trabalho escravo e a servidão foram a base da economia nacional. Nesse período, os lugares e papéis sociais dos homens brancos e das mulheres brancas, bem como de homens negros e mulheres negras e dos (as) indígenas estavam determinados.”
Os sentimentos descritos por Nelly Boxall, aparecem de modo assemelhado nas falas das mulheres que trabalham nas casas. Uma delas dizia ser tratada como filha pelo casal, mas quando a entrevista avançou, ela percebeu que os filhos de fato iam para escola, enquanto ela ficava em casa trabalhando.
Se pensarmos no nosso passado colonial, podemos associar o histórico de trabalho doméstico como uma dessas marcas que permanece até hoje. Como mulheres pesa sobre nós diversas opressões, mas a ferida colonial sangra mais em umas que em outras. Desde o início do povoamento de nosso país, os colonizadores, letrados, arvoraram a superioridade sobre os povos autóctones aqui existentes, e os consideraram não-humanos, ou “o outro”, o diferente, que podia ser oprimido.
Na pesquisa citada, as empregadas domésticas revelaram trabalhar, em certas residências, de segunda à sábado, tendo apenas o domingo para voltar para as suas. Uma delas afirmava que ganhava, mesmo nos termos das leis atuais, apenas meio salário mínimo e uma cesta básica. Como não falarmos de um sistema de opressão que atinge as empregadas domésticas ainda hoje? Se avaliarmos que uma trabalhadora tem hora pra começar o serviço, por volta das 6h, mas não tem hora pra acabar, pois dorme nas residências, seria exagero meu pressupor que, em tais condições, assim como fizeram os colonizadores “civilizados”, esses corpos são tratados como bestializados, ignorantes e que tudo podem suportar?
Não parece justo dizer que por trás de grandes homens há grandes mulheres sem pontuar sobre quem tem segurado a barra delas e cuidado de limpar a sujeira de suas casas. Michelle Perroh, em História das Mulheres, diz que o pano, a pá, a vassoura, o esfregão e o rodo continuam a ser instrumentos femininos por excelência, em todos os tempos. Trata-se de um trabalho que parece continuar o mesmo, desde a origem dos tempos, da noite das cavernas à alvorada dos conjuntos habitacionais. Até quando varreremos esse debate para debaixo dos nossos tapetes?