Genialidade, loucura e xadrez
Série de sucesso da Netflix, O gambito da rainha explora com maestria as derrotas e os delírios demasiadamente humanos na vida e no jogo
Camille Castelo Branco
camillecastelobranco@gmail.com
Todo gênio é, antes de tudo, um apaixonado. Não consegue enxergar o mundo para muito além das margens da atividade que mobiliza sua afeição. Como quem cai de amores por uma pessoa, uma mente genial, quando não está exercendo o que ama, está falando sobre o que ama, estudando o que ama.
A diferença é que os amores pelas pessoas por vezes acabam. O amor dos gênios é fiel e eterno. Em alguns casos, parece uma condenação. Gênios normalmente têm dificuldade com a vida prática e com as relações: como alguém, além de si mesmos, seria capaz de compreender a devoção – seria mais acertado dizer obsessão? – por especialidades como a música, a escrita, a física, a filosofia? Por isso, a experiência da genialidade, não raro, é uma experiência de solidão.
Beth Harmon, a protagonista da série O gambito da rainha, é uma menina muito jovem, abençoada e castigada por um cérebro genial. Como a maioria de seus iguais, Beth não é uma estreante em se tratando de dor: ainda criança, perde a mãe, uma brilhante doutora em matemática, para um suicídio que ela precisa assistir.
Vivendo de solidão e letargia em um orfanato, Beth descobre no xadrez um amor inesperado, pela intervenção do zelador da instituição, que aceita ensinar-lhe as primeiras lições. O xadrez será o primeiro espaço de estabilidade encontrado por Beth, que um pouco mais crescida confessa a uma repórter: “Xadrez também pode ser… Lindo. Notei o tabuleiro primeiro. É um mundo inteiro em 64 quadrados. Eu me sinto segura nele. Posso controlar, dominar. E é previsível. Se me machucar, a culpa é só minha”.
O cérebro é um órgão muito resiliente. Ele encontra formas de se proteger do excesso de realidade, quando esta ameaça nos destruir de tanta aflição. A negação é o mecanismo mais comum e imediato em se tratando de estruturas neuróticas: fingir, como se não fosse fingimento, que uma evidência aterradora não está diante de si. A compulsão também é um mecanismo. A repetição reiterada produz a sensação de familiaridade, mesmo que seja uma repetição de aspecto fatal.
É o que acontece com Harmon diante do abuso de substâncias: traumatizada por infortúnios tão aleatórios quanto devastadores, ela encontrará, no vício em álcool e tranquilizantes, uma forma de aquietar a ira fervilhante que às vezes acomete seu pensamento. O zelador, seu primeiro mestre, nota esta propensão ainda na infância e adverte: “Pessoas como você têm dificuldades. Dois lados da mesma moeda. Você tem o seu dom… E tem o que custa. Tem tanta raiva em você. Precisa ter cuidado”.
Penso que o grande trunfo de O gambito da rainha, enquanto narrativa de formação, está no trabalho dos produtores em torno do aperfeiçoamento mental de Beth. Que ela é um prodígio totalmente fora da curva fica evidente para o espectador ainda em sua infância. No entanto, longe de abordar o talento excepcional de Beth como uma espécie de acontecimento metafísico, a série demonstra o quanto de disciplina, devoção e trabalho árduo são necessários para lapidar o que, na falta de um termo mais preciso, chamarei de intuição para o jogo. Harmon está drogada e pensa em xadrez. Está fazendo sexo e pensa em xadrez. Está de luto pela mãe adotiva e pensa em xadrez. Acompanhamos a personagem na dor lancinante de sua primeira derrota. O medo que sente dos jogadores russos, que fizeram do xadrez um esporte assassino. A forma como seu olho fica cada vez mais fino para as estratégias do jogo.
Ainda vivo e atuante em sua coluna na Folha, Contardo Calligaris escreveu sobre O gambito da rainha e sobre o que torna a série inesquecível: “é raro, muito raro, que uma obra me leve a sorrir para a vida sem renunciar a nada (e sem esconder nada) do que faz da vida uma experiência fundamentalmente trágica”. De fato. Aos poucos, vemos Beth afrouxar o cuidadoso cerco de torres, cavalos e peões que preparou diante de si, para permitir que as pessoas adentrem e a ajudem. Percebe, surpreendida, que a companhia e o afeto alheios até lhe caem bem. Que mesmo que as pessoas em torno dela não compreendam a dificuldade de ser quem ela é, isto não as impede de amá-la. E nada disso será garantia de uma vida sem sofrimento.
O xadrez é um dos jogos mais sangrentos, brutais e mentalmente exigentes que existem. Nada em um tabuleiro é fruto do acaso ou do imponderável, e sim da capacidade lógica e de antecipação de seus jogadores. Os torneios, ao contrário da maioria das modalidades esportivas do mundo, são silenciosos como num momento fúnebre, porque os enxadristas precisam de concentração. Parece uma guerra em microcosmo: dois exércitos se enfrentam e seus generais precisam antecipar fraquezas e vulnerabilidades de seus antagonistas em um cálculo de probabilidades que pode chegar até a casa dos bilhões. O nome da série foi retirado de uma sequência de abertura em que o jogador com peças brancas sacrifica o peão em troca de maior controle. Sacrifício, agonia, frieza, agudeza de pensamento. É mesmo um jogo para pessoas como Beth – teimosa, quieta, extremamente concentrada, com uma nota de violência discreta marcando sua personalidade.
O gambito da rainha não é uma história sobre heroísmo. E ainda bem. É algo muito mais interessante: um mergulho pela vulnerabilidade humana, um passeio pelos corredores onde nossos demônios fazem morada e uma investigação sobre a possibilidade de redenção – se é que ela existe – quando se acredita que tudo foi perdido. Algo que, gênios ou não, todos enfrentaremos em maior ou menor grau em algum momento.
O xadrez possui uma característica bastante peculiar em suas bases de conduta esportiva. É um jogo violentamente competitivo, mas como se trata de uma batalha de supremacia intelectual, é difícil, após uma derrota, não sentir um profundo respeito pelo seu oponente. É algo que os roteiristas da Netflix transferiram bem para o arco dramático de Beth. Entre seus erros, autodestruição, delírios químicos e persistência, terminamos os sete episódios da série respeitando os caminhos que ela percorreu. Me parece um bom aprendizado, para as derrotas no xadrez e na vida.
Camille C. Branco é antropóloga, pesquisadora e pode ser encontrada no Instagram.