Bemdito

Maria Martins e a abundância imediata dos amores

As exuberâncias da artista que incorporou em sua biografia o compromisso com a subversão e a vanguarda
POR Paula Brandão

“O iceberg nos atrai mais que o navio, mesmo acabando com a viagem.”
Elizabeth Bishop

“Eu gosto dessa solidão daqui do ateliê. Solidão que no fundo é só uma volta ao indivíduo dando a ilusão de uma liberdade entre quatro paredes. Mas se você quiser participar dessa liberdade e entrar na minha liberdade, tem lugar para dois. E uma liberdade ainda maior nascerá daí, pois a tua alimentará a minha, e espero, vice-versa. Você deve me conhecer melhor agora para saber que pela primeira vez na vida aconteceu de sentir por você nada mais que uma aceitação absoluta, completa, sem nenhum tipo de rebelião. Que finalmente me foi dado te amar puramente, quer dizer, sem os artifícios de vaudeville de que geralmente acompanham atribulações amorosas de dois seres.” Compartilho um trecho de carta escrita por Marcel Duchamp, artista francês, para Maria Martins, escultora surrealista brasileira, em 1946.

Há convites a que, naturalmente, não é possível recuar. Como esse, feito por Duchamp a Maria. Uma mulher que vive num contexto de duas guerras mundiais, com coração pedindo alívio das agruras vividas, aceitaria esse presente do destino sem reservas. O lugar em que só dois são convocados a estar movimenta seixos e perspectivas. Maria viveu um caso de amor com Duchamp, durante os anos 1943-48, até quando o seu segundo marido, Carlos Martins, Embaixador do Brasil, foi transferido para França. Pediu que ele fosse na frente e, dois meses depois, ela seguiria ao seu encontro.

No período em que Maria produziu suas obras de maior relevância, seu ateliê particular no número 421, Park Avenue, era frequentado por Duchamp, e não se sabe quem influenciou mais o outro, contudo, para os amigos artistas, em jantares discretos, apareciam como casal apaixonado. Ela, casada, na época embaixatriz em Washington, com duas filhas desse casamento, dizia que vivia uma vida de sete às dezoito horas como Maria, em que se preocupava apenas com cores, texturas e trabalhos artísticos e à noite, quando era Maria Martins, a esposa do embaixador Carlos.

Podemos criar infinitas narrativas para esboçar o que teria acontecido quando Maria se separou de Duchamp para morar com o marido em Paris, mas nunca chegaríamos a um átimo de verdade do que de fato ocorreu. Como explicar o amor, sentimento em que não se põem palavras suficientes para expressar, mas que, quando chega, transborda tal qual o mar, com suas ondas valentes, que nem um oceano pode separar. Recorro a mais uma carta de Duchamp, que é o que nos resta como tentativa de aproximação do que sentiam. Diz ele: 

“Dez dias já sem nenhuma palavra sua, tento me convencer que você escreveu, mas pôs peso demais no envelope e o correio francês a enviou de navio invés de avião.” Ou, em mais um vazio temporal, desses que os enamorados não podem aceitar sem desespero: “Me diga logo que você não está doente. O que está fazendo? Diga nem que seja só uma palavra, mas assim que receber essa carta.” Em outro momento: “Nós temos uma necessidade de amor físico e esse longo parêntesis de castidade não fez mais do que afiar uma nova lâmina de tesoura.”

Tenho empatia por essa mulher que mobilizou paixões desesperadas, e não só com o artista francês, pois, em momentos anteriores, artistas outros foram associados a enlaces mais fugidios e breves com ela. Maria desejou ficar com Duchamp ou seu entendimento se assemelhava à compreensão de Nora, sua filha, que sugeriu em Maria, Uma biografia, que os dois eram tão diferentes que não se entenderiam por muito tempo? Ele era austero, intelectual frio (para mim, as cartas negam essa frieza) – dizia – enquanto a mãe era passional, amava e odiava violentamente, era entusiasmada com a vida.

Naquele período, as mulheres ainda não tinham direito ao divórcio, – embora ela tenha se separado do primeiro marido e conseguido casar-se com Carlos Martins na França – ainda tardaria mais pelo menos vinte anos a podermos falar em revolução sexual, pílulas contraceptivas, mulheres com independência para trabalhar fora de casa, e Maria já tinha dado o seu tributo para erigir o edifício permanente de nossa liberdade.

Conforme revelei na coluna anterior, Maria Martins: da escultora pioneira feminista à fêmea devoradora,a separação ainda em 1924, de Octavio Tarquínio, fez com que ele ganhasse a guarda permanente de sua filha. Além de tal perda, ela viu duas filhas falecerem ainda na primeira infância. A sua carreira de sucesso no exterior deixava um rastro de rupturas e julgamentos, que talvez a fizessem reconhecer em Carlos o seu único e definitivo companheiro. Nora, filha de Maria, afirma que Marcel Duchamp queria que ela abandonasse tudo e ficasse com ele, mas que a mãe sabia que não se pode fazer certas coisas.

É possível que já dominasse, àquela altura, o que Elizabeth Bishop poetizou como a arte da perda, e foi impossível não estabelecer essa conexão: “Perdi duas cidades lindas. Um império que era meu, dois rios, e mais um continente. Tenho saudades deles. Mas não é nada sério. Mesmo perder você (a voz, o ar etéreo, que eu amo) não muda nada. Pois é evidente que a arte de perder não chega a ser um mistério. Por mais que pareça muito sério.

”A resposta para nossas perguntas, Maria talvez tenha dado sem pronunciar uma palavra, mas de modo eloquente em sua escultura denominada “O Impossível” (1945). Analisada na obra Maria Martins: Desejo Imaginante, mostra um casal antropomorfo, no qual o elemento masculino mantem o pênis prono entre as pernas da figura feminina. Ele possui tentáculos que vêm de modo avassalador em direção a ela, que o repele. Ali há a presença de uma relação a dois, do desejo erótico, mas também de toda a sua complexidade, que ela nomeia no campo da impossibilidade de existir. 

Paula Brandão

Doutora em Sociologia pela UFC, e professora do curso de Serviço Social (Uece). É pesquisadora na área de gêneros, gerações e sexualidades. Membro do Laboratório de Direitos Humanos e Cidadania (Labvida) e integra o Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH).