Nem só de confete se fez o carnaval
“Só me senti brasileiro duas vezes. Uma delas, no carnaval, quando sambei na rua.”
País do Carnaval, Jorge Amado
Era a primeira noite de carnaval de muitas que viriam. No interior, há trinta anos, muitas garotas só podiam ir ao baile depois dos 15. Quando a banda soltou o primeiro grito e os instrumentos repetiram aquela musiquinha que todos reconheciam (Allah-la-ô), eu, toda fantasiada, formando par com minhas amigas, me joguei no salão. Não sabia que esses acordes eram testes e a banda parou enquanto eu dançava sozinha no meio da pista.
Como respondeu, dia desses, uma vendedora de uma loja ao ser questionada por mim se eu não tinha exagerado – toda composta por um brincão, bracelete e anéis: “amiga, se fosse outra pessoa, eu diria que sim, mas você sustenta!” – eu tirei de letra. Nesse 2022, contudo, confesso que sinto a mesma sensação. Corri no primeiro acorde, mas não sabia o que esperar.
O carnaval sempre foi aquela época do ano que eu aguardava com ansiedade, cosendo velhas fantasias, adquirindo novas e pensando em que papéis poderiam ser interpretados no ano seguinte. Já fui pirata, marinheira, jogadora de futebol, banana de pijamas, dentre tantas outras. Nessa festa, já perdi e ganhei novos amores, briguei com as amigas, fiz amizades, dancei horrores, beijei nas bocas, fiz dancinhas que falavam sobre devorações, capeta, sou crocodilo, virei bicho.
Esse é o segundo carnaval que não tem festa de rua e com ele não se posterga apenas o festejo popular, mas sentimentos reprimidos, gritos de alegria e prazer, vestígios do que não foi feito, folia das boas, quatro dias de intervalo para extravasar o que foi contido. No Brasil, dizemos que o ano só começa quando essa festa acaba. Portanto, estamos adiando há dois anos o ritual de início de ano.
Digo sempre para o meu filho que tem pouquíssimas coisas contra as quais não adianta lutar para convencê-lo de que não vale a pena resistir, diariamente, a acordar cedo e ir à aula. Mas existem tantas outras em que podemos seguir firmes nas batalhas. Eu queria me manter firme na compreensão de que o carnaval era uma dessas lutas vencidas, estender minha redinha e passar quatro dias lendo. Mas eu vi a minha caixa cheia de enfeites, glitter, brincos, pochetes brilhantes – e eu travei a guerra do impossível.
A alegria é um sentimento genuíno e, para mim, carnaval é como uma coisinha dessa que ou você tem fincada na carne ou não. Eu sei que há guerra, enchente, mortes que continuam, contaminação diária, mas também há muita gente com seu reforço tomado, três doses aplicadas graças ao SUS, crianças com sua dosagem inicial, universidades retomando aulas presenciais. Enfim, a vida, aos poucos e cuidadosamente, vem sendo retomada em porções filigranais.
O carnaval é um ritual que permite a um povo dramatizar valores globais e abrangentes da sociedade. Roberto DaMatta, em Carnavais, malandros e heróis, avalia que essa festa é aquela que paralisa radicalmente toda a coletividade, abandonando o trabalho, no melhor dos feriados nacionais. Esse tempo especial sem serviço mobiliza populações inteiras em todas as cidades e organiza o povo no sentido de massa. Não tem uma data fixa porque se orienta pelo relacionamento entre Deus e os homens (e mulheres), tendo um caráter transcendente e abrangendo categorias como o pecado, a salvação, o sexo em excesso, num tempo de suspensão das interdições.
Dizemos “brincar” carnaval, porque é do lúdico e da fantasia que se trata, da celebração da aventura. DaMatta ensina que “…brincar é colocar brincos, isto é, unir-se, suspender as fronteiras que individualizam e compartimentalizam grupos, categorias e pessoas.” Fala-se de um mundo criado para a mediação, encontro e compensação moral. As fantasias distinguem e revelam tudo o que você é livre para escolher viver.
Confesso o meu pecado: eu estou naquele momento em que eu queria era ver gente. Quando olho alguém se embrenhando no mato, me deprimo. Sei que ainda não podemos relaxar e a medida que cada um estabeleceu para correr seus riscos nesse carnaval, eu não julgo! Aqui também não vai uma congratulação para quem foi aos bodes e leões da vida! Sabemos que o carnaval, como festa popular, não colocou seu bloco na rua esse ano!
As praças ficaram fechadas, as festas particulares tinham preços que variavam de quarenta a mil reais para quem pudesse pagar e estivesse com seu calendário vacinal em dia. E os órgãos de fiscalização estavam tão preocupados com os bailinhos de 40 reais, que fecharam os olhos para os maiores, feitos em shoppings e restaurantes lotados da Aldeota. Aguardamos, mais um vez, que, no próximo ano, o desbunde seja geral, sem guerras, vírus e com o povo nas ruas, naquela que deveria ser a festa mais democrática do calendário nacional.