Bemdito

Onde estão os pássaros para imaginarmos o voo?

Em tempos de políticas da morte, é urgente estar em movimento
POR Iana Soares

Em tempos de políticas da morte, é urgente estar em movimento

Iana Soares
ianascm@gmail.com

Uma revoada de pássaros. Escrevo esta imagem para que voem dentro dos meus olhos. Em ritmos alternados, mudam repentinamente a direção, juntos, sem que eu adivinhe o instante exato em que farão uma curva e depois outra. Se observo longamente, começo a compreender a rota, o desenho, a dança. Antes que alcancem outro continente, peço que voem e revoem em mim. Tento caber na asa de um deles para chegar ao outro lado da travessia.

De repente já não consigo ver os pássaros no alto. Estão quietos e grudados ao chão. Quando acho que querem pegar algum impulso, nada acontece. Me esforço. Chego perto. Junto algumas palavras que possam encostar nos bichos, sem perturbá-los. Uma brisa, um sopro, uma lembrança, uma mão que desliza sobre cada um e diz baixinho: vai. Vamos. Nada.

Os pássaros sumiram. É a morte, eu sei. Quase meio milhão de brasileiros foi enterrado em um país sem vacinas para todos. Meio milhão de brasileiros mortos e um presidente da República passeia de moto ao lado de outros perversos que vestem verde e amarelo. Com um sorriso azedo, capaz de matar também, Bolsonaro segue sem máscara e sem vergonha de comemorar a morte. Enquanto alguns sobem em palanques, distribuem cloroquina e mentem em CPIs, milhões de brasileiros sentem fome, sem metáforas. Sentem tontura e dor na boca do estômago. Sentem medo.

Me esforço para encontrar os pássaros, mas para que serve falar de pássaros em tempos tão terríveis? Ou de jambos, monólitos, damascos, árvores, retratos, cavalos, peixes abissais, cidades e sonhos? Eu não sei. Demoro para organizar a raiva, a dor, a impotência. Quase desisto, mas daí os pássaros aparecem e, enquanto imagino o movimento que fazem juntos, eu me espanto e quase voo com eles, outra vez.

Iana Soares é jornalista e fotógrafa. Está no Instagram.

Iana Soares

Jornalista, fotógrafa e professora, tem mestrado em Criação Artística Contemporânea pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Barcelona e atualmente coordena o Programa de Fotopoéticas da Escola Porto Iracema das Artes.