Poderia eu escrever crônicas não femininas?
Ao (re)ler a escritora inglesa Virgínia Woolf, sempre me surpreendo com suas questões sobre a escrita feminina. Não apenas em Um teto todo seu, em nova edição intitulado Um quarto só seu, mas em outros escritos, ela se preocupou com o que as mulheres tinham a dizer e redigir. A escrita feminina, dizia ela, desde a filósofa Safo, 600 anos antes de Cristo, se fez presente, entre fluidez e pausas, e precisamos entender o porquê das mulheres escreverem pouco ou nada, em certas épocas, e em outras, retomarem um intenso fluxo discursivo.
Basta dizer que as mulheres, até antes do século XVIII, nem eram encorajadas, e muito menos se admitia que escrevessem. Eram seres criados na ambiência doméstica, “da sala de estar para a cozinha,” servindo chás – como a própria Virgínia Woolf, constrangedoramente, reconhece ter feito em Um esboço do Passado – , enquanto os homens experimentavam uma vida nas Universidades, nas esquinas e em seus trabalhos. Viam o mundo e traziam suas experiências para seus livros. Alguém imagina, remete Woolf, o que seria de Guerra e Paz, de Tolstói, sem ele ter servido como soldado na Guerra?
Como pouco viam do mundo, no Século XVIII, as mulheres começaram a escolher maridos e o que deviam escrever. Na ausência da efervescência dos grandes acontecimentos mundanos, passaram a descrever suas vidas e seus romances tinham sempre fortes personagens que lutavam contra a opressão em que estavam inseridas, além de bandeiras propriamente femininas. Caíram logo, na boca dos críticos da época, todos homens, que esses escritos eram muito subjetivos e sentimentais.
Virgínia Woolf, em A arte do Romance, revelou que o ponto de virada para que fossem levadas a sério se deu quando elas passaram a escrever livremente, sem as questões inerentes as mulheres. Seria uma escrita sem medos, amarguras, sem protestos e nem reivindicações. Uma escrita sem obstáculos, mais universal e repercutindo questões gerais, humanas. Fiquei me perguntando: será que podemos nos dar ao luxo, quase um século depois, de esboçar uma escrita descolada das nossas pautas históricas e opressivas, que nunca foram superadas? Podemos mesmo, escrever como quem veio ao mundo a passeio, apartadas de todas as nossas demandas diárias? Eu trataria nessa coluna sobre o quê: a goleada do vozão? A nova cerveja que imita a heinecken, cuja nota final é mais adocicada? Ou que tal uma cartilha de bons hábitos de conduta e higiene para o macharal? Eu sei, esse último é importantíssimo, mas nós temos coisas nossas, mais urgentes, para abordar.
Me causou atribulação quando Woolf disse que as mulheres viviam da sala de estar para a cozinha, pois tenho dito que ando muito cansada do meu trabalho, diariamente, sempre on line, que ele acaba me deixando em um roteiro prescrito e restritivo: sala de estar – escritório – cozinha. Enquanto isso, meu marido sai sete da manhã e chega sete da noite. De lá, ele vem cheio de assuntos novos, vivências em outros espaços, e eu, nessa pandemia, como professora de uma Universidade (por favor, nesse momento, não é bem-vinda a fala sobre o privilégio de trabalhar em casa enquanto milhares estão desempregados, eu sei que é!), tenho passado dias inteiros sentada, em frente a um computador, em reuniões, aulas, cursos e a mais-valia expressa com força total, nos doze grupos de trabalho do meu whatsapp, que entram noites e finais de semana adentro.
O que tem me sobrado como material para minhas elocubrações, é pouco mais que as mulheres de séculos atrás: observar os comportamentos e vivências do que tenho visto e ouvido, nas escapadas dessa rotina. As experiências dos homens continuam muito mais plurais do que as nossas, por isso nossas escritas precisam ser políticas e assertivas se quisermos que ninguém precise falar disso no século XXII.
A escrita verdadeira, não pode apagar a personalidade de quem a conduz. George Orwell, em Por que Escrevo, diz que escrever é uma luta exaustiva contra o demônio, ninguém faria isso se não tivesse uma força demoníaca o compelindo. E revela: “Eu escrevo porque tem uma mentira que eu quero expor, algum fato para o qual quero chamar a atenção, e a minha preocupação inicial é conseguir ser ouvido.” Ninguém escreve para não ser lido. Escrevemos para chamar a atenção para questões corriqueiras, que podem ser relevantes para qualquer um de nós.
O autor diz ainda que escrever, requer ter convicções firmes quanto ao estilo da prosa, amar a superfície da terra e ter prazer com objetos sólidos e informações inúteis. E arremata: “Examinando em retrospecto a minha obra, percebo que toda vez que me faltou propósito político, acabei por escrever livros sem vida e fui atraído por trecos floreados, frases sem sentido, adjetivos ornamentais e enganos em geral.”
Isso prova que os homens também, e desde sempre, escreveram sobre seus próprios interesses e marcados por uma dinâmica mantenedora da estrutura como ela está. Nenhum ser humano escreve apartado de suas próprias vivências, ansiedades e busca de respostas políticas para sua geração. Socorro Acioli, em seu Prefácio, ao Um quarto só seu, diz: “Quando uma mulher decide escrever e dizer o que pensa, está sendo corajosa, há sempre algo a romper, é assim desde o princípio. Mulheres são ensinadas a pedir licença.” Nós não pediremos!