Bemdito

Quando cai um anjo

Autorretratos da fotógrafa Francesca Woodman, autora de obra tão obscura quanto deslumbrante
POR Camille C. Branco

“I feel there is an angel in me” she’d say “whom I am constantly shocking”.

(Lawrence Ferlinghetti)

Quando descobri a fotografia de Francesca Woodman, era muito jovem. Passava algum tempo olhando meu corpo e rosto no espelho e estranhando-os. Buscava, em meu reflexo, sinais de fratura, de estilhaço, marcas visíveis do sofrimento de uma cena interior agonística. Nunca encontrei – meu rosto e meu corpo continuavam atestando certa maciez e uniformidade frequentemente atribuídas à juventude. Não havia deformidades que traduzissem, ou dessem conta de representar meu espaço sentimental e suas desordens.

Então, eu me voltava para a página em branco, um material barato, tentando dar forma a isto que, em meu reflexo, insistia em não se inscrever. Por esta razão, como receptora, as fotografias de Woodman provocaram quase uma perfuração em meu olhar. Acreditei, naquela idade, que ela havia conseguido: que havia capturado este ânimo espiritual ferido, partido.

Começo meu texto com este relato para evitar algo que considero um erro interpretativo grosseiro no contato com a obra de Woodman. A fotógrafa se suicidou com apenas 22 anos e seus retratos eram, predominantemente, autorretratos. Estes dois elementos conduziram muitos de seus intérpretes a recaírem em um psicologismo rudimentar, que tentou, não raro, diagnosticar Woodman, apreender seus sintomas, por meio das imagens que a artista produziu.

Essas leituras, creio, dizem mais sobre a neurose que se pode chamar de “interpretose” do espectador, do que propriamente sobre o “Eu” de Woodman, de muito mais difícil apreensão. Se me identifiquei tão fortemente com seus retratos, há nisto sinal de que a persona de Woodman possui algo de fugidio e, por isto mesmo, apropriável por quem observa suas fotos. Ela parecia mais interessada não exatamente na própria singularidade, mas no próprio desfazimento.

Na capa púrpura do catálogo de sua exposição no Museu de Arte Moderna de Estocolmo, está centralizada uma fotografia quadrada em preto e branco (como seriam a maioria de suas fotos) de Woodman vista pela câmera de cima para baixo. O rosto nos observa com a cabeça inclinada para trás. Os seios estão descobertos. Os braços se inclinam na mesma direção da cabeça. O chão onde ela pisa é obscurecido por uma sombra. Logo abaixo de seu nome, lê-se, na capa, em letras cursivas, o título da exposição: On being an angel. Faz sentido: neste retrato, e em muitos outros, Francesca joga com a cena como se estivesse fotografando o ato de desabar.

Esta metáfora angélica, de uma beleza estranha e desolada, seria explorada em outras fotografias. Se há um anjo na obra de Woodman, este anjo decaiu. Lençóis brancos lançados ao ar dão a impressão de asas perdidas. Fotografias em que ela se posiciona diante de uma parede tingida de respingos de tinta escura, que se estendem às suas costas, aludem à mutilação semelhante.

Uma fotografia em que ela aparece atravessando o buraco de uma lápide causa o efeito de uma espécie de transição do mundo metafísico para o físico. O corpo angélico está ferido: Francesca o maltrata estrangulando as coxas com pedaços de fita durex. Prendendo a própria pele, inclusive a auréola dos seios, com pregadores de roupa. Apertando com força partes do corpo com as mãos.

Nas fotografias que considero mais interessantes, Woodman explora a técnica do tempo de exposição prolongado de sua Yashica para fugir de cena. Algumas de suas fotos contêm apenas borrões de seu corpo: uma perna com sapatilha preta é o que resta de outras partes que dão impressão de terem escapado pela janela; seu rosto, cujo corpo está apoiado acima de um espelho, aparece borrado; seus pés e sua cintura são os elementos visíveis de outras partes de uma pessoa que foi mimetizada pelas paredes do ambiente.

Em outras fotos, também instigantes, Woodman surge encolhida pelos cantos de seu apartamento mal cuidado, como um bicho acuado. A ideia de animal encurralado também pode ser transposta para a de uma criança pega no ato de uma travessura. É perceptível que Woodman, em alguma medida, está brincando. Mas a brincadeira possui algo de macabro. Ao despedaçar sua imagem, ela não deixa de provocar o observador com a pergunta angustiada: “Será que as partes que foram divididas poderão novamente ser reunidas?”. É essa subjetividade fragmentada que torna o trabalho de Woodman tão singular.         Muitas artistas mulheres utilizaram a si mesmas e suas experiências como matéria-prima de seu fazer artístico. A razão mais imediata, uma razão inclusive apontada pela própria Woodman, é que este é o material mais próximo e mais disponível. Mas me inquieta a suspeita de que esta preferência não deixa de ter relação com o fato de que não houve, para as mulheres, a construção de um estatuto de humanidade tão sólido quanto para os homens, notadamente brancos, notadamente heterossexuais.

E, ao invés de tentar restituir algo que nunca foi, de fato, erigido, muitas artistas se interessaram por explorar justamente esse caráter de instabilidade existencial que marca tal tipo de estadia no mundo. Woodman, ao invés de tentar resgatar uma espécie de “essência” ilusória de si mesma, investiga, em seus retratos, a erosão de suas próprias margens. Seria tentador poetizar seu suicídio se atirando de um prédio como uma espécie de voo final de um Ícaro próximo demais do sol. Mas é uma tentação rasa demais. Parece mais grave e mais legítimo o lamento pela perda precoce de uma artista que presenteou o mundo com uma obra obscura e, por isso mesmo, deslumbrante.

Camille C. Branco

Antropóloga, doutoranda pela UFPA, desenvolve pesquisa sobre mobilização social na Amazônia, feminismos, corporalidades políticas e violência.