Bemdito

Se não posso fugir, só me resta o delírio

Como imaginar outro Brasil desde o café da manhã até o final dos tempos?
POR Iana Soares

No último mês, devo ter dito pelo menos nove vezes que queria fugir para as montanhas. Em voz alta, porque mentalmente devem ter sido muitas mais. Poderia ir para a beira do mar, também. Não posso comprovar com estatísticas em quantas ocasiões esse projeto escapista rondou minha cabeça durante a vida, mas tenho a sensação de que nunca desejei tanto ir para um lugar onde eu possa levar meu amor, meus amigos, meus discos (o Spotify) e nada mais. Elis dura pouco na minha epifania juvenil. Logo escuto: tu não te moves de ti. Eu sei, Hilda, eu sei. O Brasil também não se move de mim. 

Me vacinei. Poderia ter começado esta conversa com uma partilha astral, alegre, cheia de esperança. Só que eu sou brasileira e, embora não desista nunca, estou exausta. Vamos lá. Senti muitas coisas. Senti o coração apressado, as mãos suadas, um desejo de sair gritando “uuuuuhu” em cada trecho do processo de vacinação (fiz isso algumas vezes, não passei vontade). Sinto até agora uma angústia grande, que é a de fazer a alegria coexistir com a indignação de que a maioria dos brasileiros ainda não tem uma data para ter acesso a esse direito. Sim, um direito. Saúde, educação, comida, cultura, arte. É absurdo estarmos gritando o óbvio e repetindo em hashtags o que em tese está garantido na Constituição. 

No momento do retrato, comemorei como se conseguisse, por um pequeno instante, derrotar um genocida. O governo Bolsonaro ignorou, em 14 de agosto, 70  milhões de doses da vacina que agora está neste corpo semi-imunizado contra a Covid-19. Se houvesse respondido dentro do prazo, a chegada de doses da Pfizer no Brasil poderia ter sido em dezembro de 2020, e não em abril deste ano. O contrato só foi fechado em março, quando já lamentávamos 400 mil mortos. Já são mais de 470 mil e o presidente mente ao insinuar que não são nem metade. 

Ontem, na banquinha onde como tapioca há mais de 15 anos, ouvi um provável eleitor do Bolsonaro, que eu julgava arrependido, dizer que “político é tudo a mesma coisa”. Lembrei-me de quando ele esculhambou a Dilma, mas achei que já tinha recuperado algum discernimento. Subi a máscara, larguei a tapioca no balcão, abri os braços e disse: estamos em 2021 e você ainda acha que um presidente que ri dos doentes, provoca aglomerações, justifica estupro de mulheres, ataca jornalistas, incentiva o uso de armas e se associa a milicianos em plena luz do dia é a mesma coisa que qualquer outro? Meu interlocutor arregalou os olhos e começou: veja bem, eu sei que não é a mesma coisa.

Talvez eu sonhe com montanhas porque tem sido difícil imaginar um Brasil democrático e imenso, sem fome, sem racismo, sem machismo, sem lgbtqia+fobia, sem perseguição de professores, artistas, jornalistas, cientistas, povos indígenas, quilombolas, ambientalistas. Ainda cheio de contradições, mas um país onde seja possível viver em abundância, sem um presidente que admire a morte e a incentive, em genocídios cotidianos. Como não posso escapar agora, será necessário insistir nesse delírio comunista, que é coletivo, ainda bem. Vou respirar fundo. Preciso estar disposta e aberta ao conflito, ao diálogo e à possibilidade de transformação. Inclusive às sete da manhã, enquanto eu tomo meu café amargo.

Iana Soares

Jornalista, fotógrafa e professora, tem mestrado em Criação Artística Contemporânea pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Barcelona e atualmente coordena o Programa de Fotopoéticas da Escola Porto Iracema das Artes.