Bemdito

“Segure sua cabrita que meu bode está solto”

A valência diferencial dos sexos nos rituais masculinos e femininos
POR Paula Brandão
Pintura: Zoe James

Pense por um minuto: quantos anos você tinha e onde estava quando disseram que “você virou mocinha”? Eu jogava pedrinha no quintal de minha avó, sentada no chão quente, quando ela disse isso, em tom de celebração, indo de encontro ao meu estado de denegação e infelicidade, como uma criança que queria apenas ser deixada em paz para brincar com meninas e meninos, nas redondezas de sua casa, na pequena cidade.

Para quem estuda sexualidade feminina há anos, qual foi a minha surpresa – ao tratar de calcinhas menstruais na coluna passada – descobrir que esse tema ainda é circunscrito a uma área de tabus e silenciamentos. E foi assim que, na minha última aula, tive uma lufada de depoimentos espontâneos de jovens relatando suas menarcas, revelando uma vivência de sofrimento físico e psíquico.

Eu disse a elas que faria esse debate, para que possamos refletir e evitar que aconteça o mesmo com nossas filhas, sobrinhas e jovens mulheres que precisam de apoio nesse período. A primeira delas revelou a sua menstruação como um momento de grandes perdas. Ela adorava jogar bila na rua, cercada dos amiguinhos da época, até que um dia, ao voltar da escola, após “virar mocinha”, sua mãe tinha distribuído as bilas para os vizinhos, pois ela não devia mais brincar com os garotos.

Sobrou-lhe muita tristeza, pois, além de sua diversão preferida, ela foi ainda tirada do espaço da rua e colocada dentro de casa, com regras e restrições até para as comidas que ela gostava de saborear e que, supostamente, fariam mal. Ela lembra, com desdém, que, quando se queixava das cólicas, diziam-lhes: quando casar, passa! Ao que responde hoje: não passou.

Tivemos uma conversa daquelas bem íntimas, mesmo em sala de aula virtual, pois sentíamos que a partilha era importante e que as situações se repetiam. Uma jovem disse que menstruou jogando futebol com os meninos e sentiu que ali acabara a sua infância. Outra, que a mãe decretou: “de hoje em diante, você lavará suas próprias roupas!” E ela disse que pensava no irmão, que era rapaz, e dele nunca fora solicitado o mesmo. Houve ainda uma que afirmou ter menstruado, pela primeira vez, no final de semana que estava na casa do pai, e os dois se desesperaram, sem saber o que fazer.

Rituais de entrada na adolescência


No Nordeste, tem um adágio que diz “prenda a sua cabrita, que meu bode está solto”, para ressaltar que os rituais de entrada na adolescência são bastante diferenciados. Aos meninos, acontece às voltas com os primeiros jogos sexuais, que levam às comparações e disputas entre eles e, invariavelmente, ao ganho de liberdade para suas conquistas.

Já as meninas, se antes da menstruação podem brincar e transitar entre os dois mundos, ao virarem “mulheres” acontece a morte simbólica dessa liberdade e, simultaneamente, o isolamento dos homens. Nesse rito de passagem, em que são arvoradas à condição feminina, começam a ser apresentadas a todas as restrições que a condição de mulher as trará e aprendem que esse é um lugar de impedimentos.

Entendi isso, do meu jeito, ali sentada naquele chão fervente, e tentei brigar com meu corpo, dizer-lhe que ainda era cedo. Mas, como você, segui em frente, num desconforto promovido pelas próprias mulheres à minha volta, que passaram a evitar o assunto – à exceção de minha avó -, tornando-o obscuro.

Mais tarde lembrei que minha mãe evitou ter essa conversa comigo – assim como tantas outras – e chamou uma tia solteira para me explicar tais questões. Toda mulher menstrua, mas essa passagem se dá ainda de forma dura, representando perdas com o novo status, carregado de proibições. Agora podem ter filhos, casar, e a sexualidade passa por uma suspeição, acompanhada pelos tutores da moral – mães, pais e irmãos –, que começam a regular o fluxo menstrual mensal e a interpelar se a regra veio ou não.

“A regra”

O próprio termo “regra”, significando equilíbrio físico e mental, permitiria à mulher o encontro com sua verdadeira “natureza”, a maternidade, diz Mary Del Priore, em Ao Sul do Corpo. A magia do sangue secreto, que tinha o poder de enlouquecer, de cortar o leite, de estragar a comida, revela uma rede de prescrições e costumes. Nesse período, era recomendado que tomassem caldos de galinha, evitassem comidas azedas e banhos, e criava-se um regimento que excluía a mulher da vivência comunitária, e imprimia a rubra diferença que as diferenciava dos homens. 

Apesar de ter amigas que, até hoje, não cortam o cabelo menstruadas, me surpreendi com a zona de silêncio sobre o tema. Vivemos num país tão desigual, que, enquanto a classe média usa métodos autossustentáveis, como calcinhas menstruais e coletores, convivemos com a pobreza menstrual, mulheres em situação de vulnerabilidade socioeconômica, que, durante o ciclo menstrual, não têm absorventes e usam papelão e panos sujos, como alternativa.

Há algumas ONGs, como a Sangue Nosso, que trabalham na coleta de tais itens para distribuir às populações demandantes, bem como foi apresentado projeto de Lei, da vereadora Larissa Gaspar, que cria o “Menstruação sem Tabu”, cujo objetivo é distribuir absorventes para estudantes de escolas públicas municipais, a partir do 5º ano – meninas que, muitas vezes, deixam de ir à aula pela ausência desse elemento.

Precisamos falar com todas, dialogar sobre as nossas vivências de modo claro e reforçar as redes que diminuem as desigualdades entre nós. Esclarecer, também, que, a despeito de uma indústria que insiste em ofertar sabonetes vaginais – compre 2 e leve 3 em todos os caixas de farmácias -, as nossas partes íntimas não fedem mais que a dos homens, e que a menstruação não é nojenta, mas algo natural. Fale com sua irmã, filha, sobrinha, amiga, suas alunas, temos que romper com toda essa lógica do baixo-falante, prementemente. E contribuir para diminuir as desigualdades entre nós.

Paula Brandão

Doutora em Sociologia pela UFC, e professora do curso de Serviço Social (Uece). É pesquisadora na área de gêneros, gerações e sexualidades. Membro do Laboratório de Direitos Humanos e Cidadania (Labvida) e integra o Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH).