Sem medo de gastar a felicidade
Para ouvir enquanto lê:
“Velha Roupa Colorida” (Belchior)
Stefan Zweig, em O mundo de ontem, diz que o verão de 1914, antes da Primeira Grande Guerra Mundial, foi o mais belo de todos. Raramente se viu um verão tão exuberante, belo, dias radiantes de julho, com campos perfumados, bosques sombreados e frondosos. Quando li sobre esse “último verão” da Europa, entendi inteiramente do que se tratava: um tempo de certas esperanças, sem determinadas preocupações.
Tenho insistido em olhar as fotografias de 2019-20, e parece que já têm dez anos que vivemos aquilo tudo. Procuro recuperar o que tinha por trás do brilho das pessoas, o riso franco com motivo de verdade para sorrir e a sensação de despreocupação. Penso mesmo que eram dias ilustres, férteis e belos, ainda que tivéssemos tantos problemas, mas eram de outra natureza!
Lembro que estivemos nas ruas em fevereiro para dançar ao som do melhor carnaval alencarino. Sim, não tenho dúvidas que nunca haverá um carnaval como aquele: colorido, alegre e cheio de emoção. Jamais veremos, como em tais dias, aquele entreolhar inocente e a festa da crença no que é possível. Olho, (re)vejo e intuo.
Julián Fuks escreveu uma coluna Se eu não puder dançar, não é minha pandemia, em que diz que o tom dos nossos dias tem sido ditado pela tristeza, o sofrimento, e indaga: Não será preciso aceitar que aconteça um pouco de alegria, nossa ou alheia? Revogar interditos, suspender julgamentos e deixar de imputar imoralidade à diversão e euforia? Ele diz que a alegria tem sido motivo de vergonha e de indiferença. Estamos mesmo condenados a viver tristes até todo o pesadelo acabar?
Queria assegurar uma coisa para vocês: nós vamos pegar o jeito de novo da alegria, de cantarolar e sorrir sem pedir desculpas. Empregaremos nossa voz para reivindicar e lutar como nunca, mas há que sobrar espaço para o gozo e a felicidade sem culpa, nem limites. Fuks, na minha pandemia, tem que ter dança também, mas ontem eu saí mesmo sem dançar! Quando sentei à mesa e escutei os primeiros acordes de Velha Roupa Colorida, de Belchior, acreditei no poder da mudança. Meus olhos brilharam, meu coração saltou e meus lábios repetiram que um dia isso será passado.
A esperança me contagiou de tal maneira que eu, sem me ocupar dos interditos, subitamente, levantei e comecei a cantar e dançar. Eu não saí do lugar. Não havia perigo de contágio algum maior que o de ter ficado ali sentada, mas de imediato fui interrompida e me lembraram do decreto que proibia de dançar. Fiquei desconfiada de que essa proibição, por mais que seja importante – imagina se todos no bar fizessem o mesmo? –, tenha um caráter simbólico de reter o desbunde, a alegria e o festejo ainda que fugidio.
“E agora pássaro preto, o que se faz?
Heaven never, never, never, never, never heaven
Pássaro preto, black bird
Pássaro preto responde
O passado nunca mais.”
Mesmo sem dançar, eu vim – dizia, porque não se dança só com o corpo, mas com a alma, com os olhos e o coração a saltitar, e isso tudo vai passar!
Ann Heberlein, na biografia de Hanna Arendt, descreve-a como uma mulher espirituosa, de mente aguçada e humor afiado, com uma boa dose de autorreflexão e amor pelo mundo, mesmo depois de passar pelas duas guerras mundiais e a perseguição pelos nazistas. Arendt afirmava que existem pessoas cuja luminosidade, intelecto e originalidade são capazes de esperança e luz:
“Mesmo nos tempos mais sombrios, temos o direito de esperar alguma iluminação, e que tal iluminação possa provir menos de teorias e conceitos e mais de luz incerta, tremeluzente e muitas vezes, fraca que em suas vidas e obras, alguns homens e mulheres acendem em quase todas as circunstâncias e irradiam pelo tempo que lhes foi dado na terra.”
Temos que nos dotar dessas raras habilidades de luzir ainda que nesses tempos, em tais condições, e viver a emoção de cada dia. Em um texto que trata da alegria mais corriqueira, pode parecer estranho ser conduzida por Hannah Arendt – mas só para os que desconhecem essa libriana, que, frente a estarmos tão habituados às velhas oposições, propõe um pensar apaixonado, no qual pensar e estar-vivo se tornam um. Mesmo com a pandemia ainda à espreita, temos que abrir todas as janelas da alma, respirar fundo e exercitar a nossa humanidade. O mundo anda pesadíssimo, mas você não vai aguentar ficar triste por mais muito tempo. Vivemos num país deprimido, antes mesmo de a pandemia acontecer.
Andar pelas ruas de modo consciente, apesar de tudo, não tem sido fácil. As pessoas transpiram tristezas e, como eu digo, andam “debacle”. Não tinha como ser diferente, e nem vou repetir o que vocês já sabem. Mas, vez por outra, saia para um café, um chopinho, use máscara e álcool em gel, e gaste toda a sua felicidade. Chegue em casa com ela toda usada!