Carta ao pai que trabalha
Um homem se humilha/ Se castram seu sonho
Seu sonho é sua vida / E vida é trabalho
E sem o seu trabalho/ Um homem não tem honra
E sem a sua honra / Se morre, se mata
Gonzaguinha
Eu queria começar dizendo que desde 2020, quando passei a trabalhar em casa por causa da pandemia, pude estar ainda mais próximo dos meus filhos. Mas a verdade é que trabalhar em casa não teve esse efeito. Pedi muito mais que as crianças fizessem silêncio enquanto eu trabalhava do que pude sair do escritório no meio da manhã para brincar junto no chão da varanda. Eles não merecem que minha companhia esteja condicionada a uma sobreposição de tarefas e prazos. Trocar uma fralda enquanto fecho um contrato por telefone ou quebrar a vista de relatórios para ver de longe a filha andar de bicicleta sem as rodinhas ainda é insuficiente para a paternidade ativa que procuro exercer.
O trabalho consome o nosso tempo enquanto as crianças crescem. Os dentes não esperam o trabalho acabar para cair. Quando foi que a minha filha passou a ler com tanta fluência todas as placas que encontra na rua? O pequeno não aguarda a chegada do fim de semana para anunciar que não vai mais usar fralda e agora sabe usar o vaso sozinho. O tempo das crianças não espera o trabalho ou o cansaço passar para acontecer.
E por que a gente escuta tanto falar da culpa materna e tão pouco da culpa paterna?
Esse é um território complexo, com a pluralidade de modelos de paternidades e diferentes contextos de famílias, sobretudo em um país de desigualdades como o nosso. No berço dos meus privilégios sociais, não sou modesto em considerar que minha presença como pai é um pouco acima da média. Isso não é mérito meu, a média é que é muito baixa, em especial em um país em que mais de 5,5 milhões de crianças não têm sequer o registro do pai em sua certidão, conforme Censo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Ainda habitamos uma cultura em que o lugar da paternidade não é estabelecido com clareza – em especial, quando exercido por uma parentalidade presente, com afetividade, corporalidade e entrega. A mãe não recebe parabéns quando sai sozinha com os filhos para qualquer lugar, por mais difícil que seja a situação. Já eu, o pai, costumo receber elogios de desconhecidos na rua quando saio com as crianças, sem a mãe ao lado, para um sorvete ou um passeio no parque. Como se um pai acompanhado dos seus dois filhos pequenos fosse um acontecimento que merece ser saudado. Não quero, nem mereço, esse ponto extra no meu boletim paterno.
Não sei há quanto tempo não acompanho as idas dos meus filhos aos médicos. Estou sempre trabalhando no horário das consultas. Também não tenho memória do meu pai me acompanhando numa ida ao pediatra ou ao dentista. Meu pai estava sempre trabalhando. Quando meus filhos nasceram, meu pai já não estava aqui e há respostas sobre esse assunto que nunca irei saber. Mas sinto mudanças culturais entre a geração dele e a minha. Estamos nessa marcha de transição entre valores novos e anacrônicos em relação à paternidade responsável.
Há algumas décadas, o homem provedor da família já se assinava em seu papel pleno de pai. O mundo do trabalho, predominantemente ocupado por homens, era suficiente para validar a paternidade. A revolução sexual e o ingresso da mulher no mercado de trabalho, entre outros aspectos, afetaram essa validação. O pai perde o monopólio do sustento da família e segue nos dilemas dessas transformações, que afetam tanto o sentido de paternidade, como sua própria referência de masculinidade.
É que, quando uma criança se machuca, os dedos da sociedade ainda apontam para onde está a mãe. Mas quando as contas da casa não conseguem ser pagas, perguntam qual o trabalho do pai. O pai desempregado agride a representação do papel social masculino não só por implicações econômicas, mas também no espelho da sua masculinidade, que também é autorizada pelo trabalho. Se o pai trabalha e consegue prover o lar, é sinônimo de poder e garantia de dominação sobre a família que depende dele. Seu trabalho garante a família mesmo que pague o preço de estar ausente dela.
Isso atravessa o tema das lacunas de gênero no mercado de trabalho. Por mais que o pai avance na postura de equivalência de divisão de tarefas de parentalidade com a mãe, a exaustão materna é legitimada socialmente como uma cultura acessível ao homem quando o convém. Isso me fez lembrar Tully, um sensível e contundente filme de Jason Reitman acerca da melancolia e sobrecarga física e psicológica da mulher durante o puerpério. No mês passado, a Argentina considerou cuidado materno como “trabalho” e garantiu direito à aposentadoria de 155 mil mulheres. Esse é um tema que não contempla apenas as mulheres, mas a nossa estrutura de sociedade.
Estamos mergulhados numa cultura que parece não ser feita para pais que querem estar presentes na vida dos seus filhos. Não se trata apenas de uma questão moral de postura paterna. O debate sobre paternidade ativa deve estar presente no Estado e nas empresas. A legislação brasileira, por exemplo, avança em passos muito lentos sobre o tema, ainda mais se levarmos em conta os diferentes formatos de família e perfis de exercício de função paterna.
Originalmente, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) previa uma licença de um dia para o pai em caso de nascimento de filho, no decorrer de uma semana. O papel legal do pai seria de ausência ao trabalho por apenas um dia para o registro da criança no cartório. A Constituição Federal de 1988 prevê a licença-paternidade como direito fundamental do trabalhador, mas para isso exige a existência de uma lei específica que até hoje não foi aprovada. Até que venha a lei, a norma constitucional prevê provisoriamente uma licença de cinco dias.
O Programa Empresa Cidadã, criado em 2008, pretendeu ampliar esse prazo de licença-paternidade para 20 dias em troca de alguns incentivos fiscais para empresas aderentes à proposta. Poucas empresas aderiram ao programa, de modo que os pais ainda estão à deriva do modesto prazo provisório de cinco dias previsto na carta constitucional. Em 2016, a legislação trouxe alguns direitos ao pai, como o de dois dias de afastamento remunerado para acompanhar consultas médicas e exames complementares durante o período de gravidez da esposa ou companheira. Além disso, legalmente, o pai pode faltar um dia de trabalho por ano para acompanhar o filho de até seis anos de idade ao médico.
Na prática, a saída do homem do trabalho para levar o filho ao médico ou participar de reuniões escolares ainda gera constrangimento para alguns trabalhadores, sobretudo quando o perfil cotidiano da empresa sinaliza estranhamento com essa prática. O diálogo para expandir a compreensão cultural de paternidade ativa na gestão empresarial pode permitir a superação da legislação em benefício da identidade e cultura empresarial. Já há pontuais exemplos empresariais com bons resultados nesse sentido. Utilizando de uma linguagem corporativa, a paternidade também gera motivação profissional e uma maior produtividade no trabalho. Ela pode potencializar competências, como gerenciamento de tarefas, capacidade de leitura de ambientes e contextos, criatividade na resolução de conflitos, comunicação com empatia, capacidades de improviso. Um pai presente sabe o que é isso.
Esses dias, uma fala do multicampeão olímpico Usain Bolt andou sendo replicada pela rede: “Cuidar de três bebês é mais difícil do que quebrar o recorde de 100 metros rasos”. Cuidar, com a profundidade que essa palavra merece, é realmente muito difícil. Por vezes, eu diria que é até mesmo incompatível com o que nos exige esse mercado de trabalho agressivo. Há tanto o que avançar nessa conversa, mas ela foi interrompida aqui pelo meu filho de três anos chorando porque não encontra seu macaco voador.