Eu, Maria e o homem que ninguém viu
A linguagem só começa com o vazio”
(A parte do fogo, de Maurice Blanchot)
Tenho dito e escutado, recorrentemente, “ô, vontade de morar nos matos”. Lá fora, o chocalho da vaca confunde-se com o ruído da forrageira. Uma revoada de periquitos risca o céu. A bromélia vermelha, com filamentos brancos, brinca de ser bonita duas vezes. Capotes desfilam na porta da casa em fila, altivos e coloridos. Montanhas desenham lonjuras. Uma abelha tenta me picar enquanto escrevo. Uma mosca grande, popularmente chamada de mutuca, barafusta meu pensamento. Conjugo naturezas na Linha da Serra.
Entrei na trilha mata adentro. Por entre pedras, lamas e declives, encontrei escombros de antigas edificações. Ocultado entre frondosas árvores, em uma casa de barro, vive um homem isolado há mais de 20 anos. Pouca gente vê o morador do pequeno casebre. Diz-se que tem barba e cabelos compridos. Veste-se de andrajos, porta unhas nunca cortadas e se esquiva diante de qualquer contato.
Raimundo, como se diz por aqui, nunca mais quis ver ninguém depois que perdeu a finada Stella. Vive de frutas e doações que deixam em sua porta. Ermo como condiz a uma dor sem fala. Inexiste ali qualquer rastro do que designam de civilização. Não há energia elétrica, rádio, fogão a gás, nem viva alma. Sequer a voz do homem ressoa no vale escondido da floresta. Uma cacimba de pedra, coberta de lodo e hera, guarda a água como fotografia.
A história do eremita não me saiu da cabeça. Como alguém vive de quase nada? Seria ele asceta, ou como se comenta na região, louco de pedra? Lembrei do livro de Maria Toinha e sua Mística dos Encantados. Ela conta que muitas das roupas que lhe dão estão guardadas em caixas e tambores, não uso porque só tenho um corpo. Não precisamos de muito para viver. Diz que seu destino consiste em descaminhar o mundo. Depois, o silêncio reinou, como reina agora e encomprida as palavras. E o que faço eu Maria com tantos nomes que nem mais serventia têm? Procuro aqui no alto da serra tambores, cacimbas, gretas que recebam algumas das tantas palavras que aceitei em mim e não me vestem mais.
O corpo pode esquecer quando lembra demais?
O destino é uma caravana nômade. Mesmo que o lugar fixe o corpo da memória. O eremita da floresta ficou para nunca deslembrar. Por décadas, tenta deixar intacta na mata fechada a matéria do amor. O homem sem palavra, o Raimundo, me trouxe de volta o tempo em que ficava meses na fazenda Cachoeirinha, nas brenhas do Vale do Jaguaribe. A luz era o lampião, o relógio, o nascer e o pôr do sol. No cair da noite, as redes ocupavam o alpendre. Era hora de escutar histórias. Sentada ao lado do homem que, carinhosamente, chamava de avô, mergulhava em um universo mágico. As paisagens ganham halos de fábulas que permanecem.
O senhor da Cachoeirinha acompanhou Lampião na serra de Pereiro, no Vale do Jaguaribe. Bena de Acelino, seleiro renomado, contava com gosto suas aventuras com o bando. De ouvidos atentos e olhos arregalados, enquanto fazia cafuné nos seus cabelos ralos, escutei a narrativa de um tio avô que acompanhou Lampião na travessia de Jaguaribe até Mossoró, nos idos de 1927. Os vaqueiros conheciam “os caminhos de dentro”, as veredas da passagem do gado. As narrativas eram interrompidas no ápice. Amanhã conto o resto. Com o coração aos pulos, insone, tentava eu mesma traçar a continuidade dos fios suspensos.
No outro dia, ouvia o aguardado chamado: “cadê a menina escutadeira?” O tal do tio, de nome Otílio, tornou-se popular na região. “Você, menina, nem sabia que é da família do famoso guia de Lampião. No final, o cangaceiro deu o fuzil ao seu tio, um papa-amarelo.” No curso desses rios da memória, entro no Google (assunto: o guia de Lampião) e, para meu espanto, vejo que meu pai herdou o tal fuzil e o doou para o Memorial da Polícia Militar.
Parte do ano vivia lá, entre caçoas de jumentos, a buscar águas nos açudes, a ver raminhos murcharem na saga das rezadeiras, a apanhar algodão e colher oiticicas no Riacho do Meio. Entre lendas da Maria Caipora, nas margens do açude Maracujá, ouvi predições de futuro. Menina, esses teus olhos amarelos ainda vão partir muito coração nessa vida. Frei Damião fez um ritual religioso na fazenda Cachoeirinha, no cume alto, ao lado da casa. Previu que tudo aquilo seria inundado. As águas da represa do Castanhão naufragaram o chão das memórias. Cachoeirinha não existe mais.
Desejo de silêncio
De que matéria sou feita? Após o tempo extensivo de isolamento, em vez do retorno ao burburinho das ruas, tenho desejado um tanto da vida que se conta no silêncio. Talvez por isso a história de Raimundo tenha se avizinhado do que havia esquecido. Parte das palavras que carrego falam alto. Deito-me na sombra de um pequeno ficus benjamina. Até que o roçar do vento, a lanugem das folhas, o zumbido de pequenos bichinhos, toquem a pele. Lugar de dizer dos encantados.
Sim, Raimundo, a dor te deixou imerso em ti mesmo. Pude te ouvir sem sequer teres aberto a porta. Nesses dias de pensar-como-quem-vê, a casa emoldurada de verde e povoada de ausência, me assentei ao teu lado. Farto banquete de descaminhados. Em silêncio te falo. Em meio à cidade, no vai-e-vem de sirenes, fascismos, horror e tragédias, Raimundo, ficamos soterrados. Tudo é muito, e tudo é tão pouco. Esperta Maria Toinha e sua mística da sabedoria: os caminhos exigem mãos vazias.
Desfazer-se de roupas usadas, de palavras gastas, de paisagens tóxicas é o que talvez nos permita experimentar o fascínio de nascer sempre. Criar os matos onde mora o corpo. Povoado de clareiras de afetos e de poucas palavras. Não esqueci Maria Caipora, guardo olhos insistentemente amarelos.
Sou cidade-serra-sertão. Viva, tal qual a mira de Lampião no escuro da mata.
Serviço
A Mística dos Encantados
Maria Moura dos Santos e Marcos Andrade da Silva Santos
248 páginas
Ed Edições e Publicações, 2020
R$ 49,15