Bemdito

Meus dias com Marilyn

Culta, admiradora da pintura renascentista, leitora de literatura e poesia, Marilyn se sentia humilhada por ser vista como símbolo sexual
POR Camille C. Branco

Culta, admiradora da pintura renascentista, leitora de literatura e poesia, Marilyn se sentia humilhada por ser vista como símbolo sexual

Camille Castelo Branco
camillecastelobranco@gmail.com

Quando assisti Bonequinha de Luxo, ainda muito jovem, como várias meninas antes e depois de mim, caí de encantos por Audrey Hepburn. Fiquei fascinada por suas linhas corporais longas, seu maxilar marcado, seu rosto de raposinha, seu vestido preto Givenchy. O interesse aspiracional por Audrey revelava também um traço de socialização feminina, relativo à insatisfação com a autoimagem, que me afastava de outra atriz da época cuja aparência estava um pouco mais próxima da minha, feita de curvas, bochechas salientes e cachos. Eu não sabia que Marilyn Monroe havia sido cogitada para estrelar a adaptação da obra de Truman Capote. Ela fora logo descartada – a protagonista Holly tinha algo de cortante e duro e, escreve Sam Wasson, “como todo mundo que conhecia Marilyn podia ver, até uma tulipa era mais dura que ela”. Não seria o primeiro papel importante que a atriz perderia.

Arthur Miller, o escritor que foi seu companheiro, afirma que, para ter sobrevivido, Marilyn precisava ter sido mais cínica, mais próxima da realidade. Em vez disso, diz Miller, ela se comportava como uma poeta posicionada em uma esquina, tentando recitar seus poemas para uma multidão mais interessada em lhe arrancar as roupas. Culta, admiradora da pintura renascentista, leitora de literatura e poesia, Marilyn se sentia humilhada por ser vista como símbolo sexual, uma imagem da qual jamais conseguiu se livrar. Ela não nascera com uma aparência comum e, para que se tornasse um ícone vendável, para que tivesse sua imagem reproduzida aos cumes da exaustão, a profundidade de seu espírito precisava ser esvaziada, tornada rasa. A imagem eterna de Marilyn, mesmo após seu suicídio, permaneceu a da loira deslumbrante, sedutora, provocativa e um pouco boba. Sua morte trágica nos leva a intuir que os efeitos foram devastadores.

Roudinesco, em seu Dicionário amoroso de psicanálise, sugere que Monroe teria feito do processo analítico uma verdadeira droga. Ela ficou alguns anos sob os cuidados de Ralph Greenson, um analista russo responsável pela condução do percurso de diversos outros artistas de Hollywood. Greenson não hesitaria em receitar, ele próprio, diversos psicotrópicos, convencido de que ela era “borderline, viciada paranoica e esquizofrênica”. No auge da carreira, Marilyn se interessou por atuar como a histérica Cecily, no roteiro escrito por Sartre para Freud, além da alma. Anna Freud, filha do criador da psicanálise, foi avessa à contratação e exigiu que Greenson a proibisse de aceitar o papel, ordem que ele não pestanejou em acatar. O diretor John Huston ficaria furioso: amargurado pela frustração da expectativa de ter a atriz em seu filme, chegaria a dizer que o espectador não entenderia como, tendo-a como paciente, Freud não a derrubava no divã após cinco segundos de tratamento. Greenson nunca se recuperaria do suicídio de Marilyn – após sua morte, em análise com Max Schur, confessaria: “Amei-a; não de amor, amei-a como quem ajuda uma criança doente, com seus medos e fragilidades. Seu medo me dava medo”. Sobre Greenson, Roudinesco escreve que às vezes pensa que os psicanalistas são mais doentes que seus pacientes.

Em Fragmentos, coletânea de escritos e fotografias publicada no Brasil pela Tordesilhas, o leitor tem a oportunidade de entrever uma Marilyn menos habitual. Escrevendo diários e poemas a atriz meditaria, com grave sensibilidade e gramática imperfeita, sobre loucura, suicídio e beleza. Nas fotografias, aparece ainda deslumbrante, mas concentrada em atividades intelectuais exigentes: lendo Ulysses, de James Joyce; contemplando uma das bailarinas de Degas; conversando com intimidade cúmplice com a escritora Carson McCullers. Sobre Marylin, Antonio Tabucchi escreve: “se suicidara porque era muito sensível e muito inteligente, e as pessoas muito sensíveis e muito inteligentes sofrem mais que as pessoas pouco sensíveis e pouco inteligentes e têm a tendência de se suicidar”.

Há algum tempo, repete-se entre os meus amigos a brincadeira lisonjeira e imerecida de que eu seria uma versão de cabelos pretos de Monroe. Bem longe de me considerar equiparável à beleza extraordinária da atriz, a revisão de sua trajetória me provoca identificação pela familiaridade com os momentos em que a complexidade do meu temperamento – com suas falhas, sua contradição, suas virtudes, seu sofrimento – foi reduzida a algum tipo de simplificação grosseira. Já fui apenas bonita. Apenas inteligente. Apenas feminista. Apenas triste. Trata-se de um gesto amplamente utilizado pela retórica patriarcal para debilitar a humanidade das mulheres. O resultado sempre foi o de sentir a extensão da pessoa que sou se encolher. Sufocar aspectos perturbadores da paisagem da minha personalidade. Melancolicamente.

Penso que a matéria humana é coisa muito fina. Feita de muita luz, muita sombra e muitas nuances de penumbra no intervalo entre uma e outra. Este aspecto excessivo, multifacetado e dilacerante do humano sempre me pareceu uma das maiores riquezas do mundo. Planificá-lo para então vendê-lo costuma resultar mesmo em tragédia. Se pudesse, em uma espécie de sonho, conversar com Marilyn, talvez não a recomendasse mais cinismo, como sugeriu Miller. Provavelmente, meu conselho para ela seria uma espécie de enigma, particular da poesia que em vida leu com entusiasmo e sofreguidão. Mais especificamente, o poema intitulado Torso Arcaico de Apolo – este deus de beleza e perfeição –, composto por Rilke. O poeta escreve (e a versão onírica é capaz de falar com os mortos de mim, subscreve):

“E não tremeria assim, como pele selvagem
E nem explodiria para além de todas as fronteiras
Tal como uma estrela
Pois nela não há lugar
Que não te mire: precisas mudar de vida”

Camille C. Branco é antropóloga, pesquisadora e pode ser encontrada no Instagram.

Camille C. Branco

Antropóloga, doutoranda pela UFPA, desenvolve pesquisa sobre mobilização social na Amazônia, feminismos, corporalidades políticas e violência.