Bemdito

O começo é um chão que não existe

A ousadia trôpega da arte de Henrique Viudez
POR Glória Diógenes

Suspenda pés e demarcações que fixam os sólidos. Deixe vagar o olhar em todas as direções. Cada casa é uma cidade. Nela, não há calçadas, ruas, placas de sinalização. Moradias são compostas por cimentos imateriais e retalhos voláteis da memória. Desalinhadamente, a vida de uma casa e de outra mistura-se, desafia simetrias, desmancha harmonias e proporções.

É que a lembrança é um artefato dissidente, torto, ruidoso. Pouco importa se a casa abriga o insustentável. Se o insustentável permanece trêmulo entre alicerces que inventa para que a vida não caia. 

O poeta desenha contexturas móveis da infância. Reminiscências constroem paredes, criam cores, tijolos nem sempre aparentes, janelas e portas de quadraturas disformes. Imagens dos bairros vividos, cravados na pele, ativam topografias entre linhas,vigas e pedras.  A memória desfaz pactos com a organização das formas, com o tempo modulado pelo calendário.

Casas sobem, descem, multiplicam-se, perfuram o impossível. Famílias crescem entre puxadinhos, rebocos, casas geminadas, sobradinhos. Como se morar nas periferias fosse corda-bamba, concreto atônito, desgeometria das formas. 

Se é no corpo que alguma coisa se passa, como diz Deleuze na “Lógica das sensações”, o observador poderá se perguntar – quem habita esses lugares? Quem deixou entreaberta a meia-porta da casa amarela? De quem são as bicicletas? Entre camadas de figuração o artista abriga ações invisíveis, formas de agir que não se conta. A casa é um corpo em mutação. Ela cresce com a família, expande-se. Sua anatomia espraia-se em fios, muretas, pedras e plumas de vínculos multiformes. “A casa é um parente”, diz o pintor.

Casas flutuam sob o punho de pedras-âncoras do inconsciente. Jaz em cada morada suspensa, o tempo das “misturas dos tempos”, o tempo que nunca passa, nunca cessa. Os lugares de morar também transitam. Abrigam-se nas malas que pesam sem que se façam ver. Não há refúgio.

Outros elementos habitam as “alvenarias de risco”. A água se faz concreto. Pinga das roupas estendidas nos varais, escoa das caixas d’água para os canos da sede e da lavagem da sujeira dos dias. As parabólicas dizem que ali e acolá o mundo e suas notícias, novelas, dramas, shows e tragédias se faz entrar. Lá fora é também dentro. A parada de ônibus, o fogão sem lume, o pixo indecifrável.  Muros e paredes transbordam. 

Entre vizinhos, um varal, uma escadinha, uma mureta pode ser o cordão que liga, diluindo distâncias. O viver das casas “do lado de lá” é caldeirão de misturas. Lugar em que os corpos assumem o mesmo tecido, patchwork de diferentes formas de ser um. Sobra pouco silêncio para devaneios. Quem sabe por isso o abandono das moradas, a ausência de gente visível. 

Lembra Bachelard, ao narrar sobre “A poética do espaço”, que a metafísica consciente é ser jogado no mundo, é ser atirado fora. Se todas essas pinturas pulularam de um dentro, quem sabe o homem que pinta siga o movimento de sair e entrar de casas em deslocamento, de céus nem sempre azuis. 

Ver quase nunca é ser trancado do lado de fora. Viudez pinta fachadas que falam da vida que se estreita e se cala. O artista é casa. Arquiteturas que tremulam e gritam sem que seja óbvio quem ali está, quem de lá saiu e permanece. 

Arriscadamente, genial e trôpego.       

Texto crítico elaborado para a exposição de Henrique Viudez (@henriqueviudez), Arquitetura Trôpega, na Galeria Leonardo Leal (@galerialeonardoleal).

Glória Diógenes

Antropóloga, é professora titular da pós-graduação em Sociologia da UFC e coordenadora do Laboratório das Artes e das Juventudes (Lajus). É uma das fundadoras da Rede Luso-Brasileira de Pesquisadores em Arte e Intervenções Urbanas (Raiu).