Bemdito

Manifesto para continuar vivendo

Dizer basta ao inaceitável como forma de celebrar a esperança e vida
POR Paula Brandão
Paz Pachy

Basta de mortes por covid-19, acompanhada pelo olhar cínico de certos carcarás da política!

Basta de segurar as lágrimas dentro de mim ao ouvir, de minha nova amiga de 78 anos, que ela perdeu seu amor para essa doença e tentar bordar alguma palavra que possa acolhê-la em seu novo estado de solidão: a palavra é inexistente!

Basta de me raivecer, ao constatar, que o bicho catando comida nos detritos, era “meu deus, um homem”, – e acrescento ao Manuel Bandeira – mulheres, vizinhas de bairro!

Basta, meu deus!

Basta de chorar, efusivamente, assistindo ao relato da filha que perdeu a mãe no Amazonas, enquanto ministravam doses de um remédio sabidamente ineficaz, tirando qualquer chance dela de lutar pela vida. Por ela, e por minha amiga que mora lá e perdeu sua mãe e duas irmãs nas mesmas circunstâncias, chega!

Basta dessa dor profunda na “boca do estômago”, sentida por quem ainda não perdeu a lucidez e nem a solidariedade, causada ao ver o líder eleito pelo povo desse país, imitando pacientes agonizando por falta de ar, enquanto outros choram seus mais de 600 mil mortos!

Basta dessa safadeza, insensibilidade e farra com os bens públicos!

Basta de duvidar da esperança e tentar mobilizar forças para levantar todos os dias, inventando uma narrativa diferente daquela que é apresentada!

Basta de não poder sonhar, temer brilhar, duvidar da esperança, porque as pessoas, à minha volta, já perderam tudo: suas casas, seus empregos e agora nem tem o que comer!

Basta de ouvir a dona Maria, nas visitas às comunidades, pedir por ajuda ao filho que está “se envolvendo com as coisas daqui, doutora! Já fui em todo lugar e ninguém me ajuda!” Eu não esqueço da senhora nem de suas lágrimas suplicantes, e se não digo seu nome real, é por respeito a sua história, coisa em bastante desuso nesses tempos!

Basta de ouvir dos jovens com idade para votar e que não tiraram o título, porque não acreditam que as coisas vão mudar! Minhas deusas, banhe-os de esperança, pois se a juventude não acreditar, o que nos restará?

Basta de marcar um médico e ter que conferir se ele faz parte do grupo que assinou o manifesto a favor do Genocida.

Basta de viver a maior crise de saúde pública desse país, e ver profissionais dizendo não ao SUS, à vida e à ciência! Só “vai dar certo”, com hashtag e tudo, se tirarem os freios e arregalarem os olhos!

Basta de tantos cortes na ciência – 92% do total do orçamento previsto, um corte aprovado pelo Congresso Nacional – desferidas em nossas próprias veias como docentes e discentes, inviabilizando as pesquisas nas mais diferentes áreas do país. Chega de ver os colegas indo embora, acolhendo propostas de incentivo de outras Universidades, porque nada lhes resta mais como pesquisadores no Brasil!

Basta de ouvir que é mimimi o racismo que não se sente na pele e escutar as piores justificativas para o crime contra a delegada, posta para fora da loja. Não foi pela máscara, nunca é pelo motivo alegado! É pelo que se apresenta primeiro, antes de qualquer possibilidade de fala: a cor!

Basta de um país machista e sexista, que continua matando, rejeitando e excluindo as mulheres por terem nascido com vaginas, e por todas aquelas que não têm uma e são assinadas não com um tiro, mas com incontáveis pauladas!

Basta de ter a metade da alegria ao encontrar as amigas vacinadas, mas não poder dançar, extravasar, porque todo esse pesadelo já podia ter acabado, mas ainda está à espreita!

Basta de uma vida inacreditável de ser imaginada há 2 anos, sem cheiros, sem beijos roubados, sem batons e sem alegrias genuínas. Não esquecerei quem esteve em prece comigo nesse momento, recriando o caminho dos afetos e dos segredos recentes da amizade. Nem as novas amigas que viram um clarão, por uma fresta estreita, e não hesitaram em entrar porta adentro! Não teremos medo de sorrir, porque somos resistência, e já aprendemos que, de algum modo, esse é o remédio mais danado para enfrentarmos a desumanidade. Querem-nos mortas, e responderemos com a vida! Vamos continuar criando quimeras, sensibilidades e amores, dando cartaz ao que realmente importa! 

Basta de despedidas pelo descaso e pela covid, reitero! Se tivermos que morrer, que não se duvide nem por um segundo: que seja por amor!

Paula Brandão

Doutora em Sociologia pela UFC, e professora do curso de Serviço Social (Uece). É pesquisadora na área de gêneros, gerações e sexualidades. Membro do Laboratório de Direitos Humanos e Cidadania (Labvida) e integra o Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH).