Maria Martins: da escultora feminista pioneira à fêmea devoradora
“Para você, o essencial é a criação que a elevará acima das contingências mesquinhas de cada dia.”
De Suzuki para Maria
Encerrou-se, no último mês, a exposição Desejo Imaginante, com as obras de Maria Martins, no MASP. Suas esculturas estão em todas as grandes coleções do mundo, como no MoMA, Metropolitan, Philadelphia Museus of Art e Museu de Arte Moderna – MAM, do Rio de Janeiro. A artista, que nascera em 1894, destacou-se por esculpir figuras femininas híbridas, inspiradas em mitologias e personagens ameríndios e afro-brasileiros.
Como dizia detestar ismos, quando era convocada como uma das maiores surrealistas existentes, ela talvez fosse avessa à alcunha de feminista. Mas, sem dúvida, Maria compõe o quadro das ancestrais que construíram a estrada, pedra a pedra, para que tivéssemos liberdade como mulheres. A autora sempre me despertou apreço e inspiração pelo modo como enfrentou o patriarcado vigente desde 1920 e viveu erigindo batalhas pessoais, artísticas e amorosas. Eu vou além, ela me despertou verdadeira paixão, daquelas que se quer saber mais diante da impossibilidade de fazê-lo.
Reconhecida mais fora do Brasil do que aqui, Maria veio de uma família tradicional mineira, com uma educação privilegiada na época, estudou no Notre Dame de Sion e casou-se com um dos grandes literatos da época, Octavio Tarquínio, tendo como padrinho Wenceslau Braz, Presidente da República, e deste enlace teve duas filhas.
Mulher à frente de seu tempo, intuía que sua vida era transatlântica e deve ter causado grande burburinho ao se separar e casar-se com o Embaixador Carlos Martins, com quem foi morar em vários países, como Japão, França e Estados Unidos. Naquele contexto, uma mulher separada sofria as duras penas dessa decisão, e isso lhe custou a perda da guarda da filha que ficou com o ex-marido, com apoio de sua própria mãe, e viu a outra filha morrer de doença viral com 3 anos. Aliás, Maria perdeu mais uma filha ainda pequena, já do seu relacionamento com Carlos, com quem teve mais outras duas. Dizem que algumas de suas obras serviram para expurgar certas dores.
Como embaixatriz, tal qual a amiga Clarice Lispector, à revelia ou à rebeldia de se especializarem em servir chás como todas as demais moradoras das embaixadas pelo mundo, elas se refugiaram, uma na escultura, a outra na literatura. Na época em que Carlos Martins era embaixador em Washington, ela abriu o próprio ateliê em Nova York. Frequentavam sua amizade Picasso, Marcel Duchamp, Piet Mondrian, Frida Kahlo, dentre outros, e suas festas na embaixada de Washington eram disputadas em toda a cidade, tendo apresentação até de Carmem Miranda.
Além de ter esculpido deusas e monstros em suas exposições em Nova York, Maria teve como ênfase, em sua obra, uma sexualidade feminina devassada, escancarada, que lhe fez ser classificada na imprensa masculina e machista brasileira da época como tendo “excesso de personalidade”. Contudo, Paulo Herkenhoff assim descreveu seu trabalho com maior apuro: “Essa problemática do desejo e canibalismo está em Freud, em Fedida, em Maria Martins e em Louise Bourgeois. Essa questão da fêmea devoradora também inclui a castração. (…) Maria Martins é uma pessoa que traz o desejo na primeira pessoa do singular. Maria é a fêmea devoradora.”
As obras que mais explicitaram a sexualidade talvez sejam Aranha, O impossível, O oitavo véu, Saudade, Como uma Liana, Favella e, se quiserem perceber o protagonismo de suas mãos, vejam também Yemanjá, Amazônia, Cobra Grande, Macumba, Yara, que marcaram a sua exposição de mitologias amazônicas, na Valentine Gallery, em 1943, em Nova York.
Gigante, escandalosamente viril e desejante, Maria, em sua trajetória como artista, deixou muitos homens apaixonados pelo caminho – a exemplo do seu cálido romance com Marcel Duchamp – e viveu intensamente esses relacionamentos extraconjugais que em nada abalaram seu casamento com Carlos Martins, que era o primeiro a aplaudir e apoiar suas atividades.
Em Maria, uma biografia, sua filha diz que ela era inteligente e perspicaz e podia fazer qualquer um apaixonar-se por ela, quando dizia: “Gosto muito de você. Diga-me quem são seus inimigos, para que eu possa ajudar a odiá-los.” Sim, temperamental como todas as mulheres interessantes, Maria, certa vez, resolveu dar uma festa de casamento para sua sobrinha no Brasil. Três dias antes, descobre que um dos padrinhos era Carlos Lacerda e cancela tudo, afirmando: “Na minha casa, ele não entra.”
Diziam que Maria era mulher sem meios-termos, amava ou odiava. E diante de uma mulher que teve que fazer escolhas na vida pessoal, difíceis para a época, certamente ela deveria ser precisa, avessa à ambiguidade para que fosse bem entendida. Posso dizer que meu encantamento por ela e sua obra foi instantâneo. A sua figura foi tão importante que, para a 2ª Bienal de São Paulo, em 1954, ela e sua trupe conseguiram trazer para o Brasil 100 obras de Picasso.
Maria morreu em 1973 e seu corpo foi velado vestido com uma roupa de gala e pés descalços, no Museu de Arte Moderna – MAM, do Rio de Janeiro, e tinha como exigência que não houvesse nada de flores nem velas, apenas suas obras, e que fosse servido uísque “do bom”. Um brinde à Maria, sua vasta obra, suas façanhas, seus amores e por nos ensinar, mesmo para uma mulher que nasceu ainda no século XIX, que somos seres de vontade e de desejo, em qualquer época e lugar do mundo.