Bemdito

Quem disse que a arte da rivalidade é masculina?

Quando a sororidade compete com a rivalidade na relação entre mulheres
POR Paula Brandão

Há um tempo escrevi nesta coluna o artigo Deus me proteja da sua inveja, baseada na observação das mulheres que usam seus amuletos tentando livrar-se do olho gordo das outras. Os retornos masculinos reconheciam, entre eles, outro sentimento: a rivalidade. Por que as mulheres são invejosas e os homens rivais? A rivalidade tem sido mostrada entre homens como algo que lhes torna produtivos. Seria comum um certo jeito de armar disputas entre eles pelo melhor emprego, o maior carro e a esposa mais bela. 

Em a Arte da Rivalidade, Sebastian Smee diz que, mais que uma competição entre ressentidos, a rivalidade é sobre sensibilidades. Ser rival requer conhecer com intimidade o outro e querer se deixar por ele influenciar. Embora seja também sobre rompimentos e traições, desejar armar uma luta de braço com alguém por alguma coisa também é sedução. Pensei: será que poderíamos falar em rivalidade entre casais? Você já se viu em certa situação em que o seu companheiro disputou algo com você, com certa docilidade? 

Alguém duvida que habitasse, sob o mesmo teto, além de muito fogo e amor, também rivalidade artística entre Frida Kahlo e Diego Rivera? E Auguste Rodin e Camille Claudel? Poderíamos dizer o mesmo de Sartre e Simone de Beauvoir sobre sua intelectualidade e mesmo a disputa por paixões contingentes? Será que justamente a rivalidade foi o elemento tácito central dessas grandes personalidades? Admitia-se essa questão, em algum momento da coexistência?

De acordo com Smee, esse sentimento moveu a criatividade de grandes amigos artistas: Manet e Degas, Matisse e Picasso, Pollock e De Kooning e Lucian Freud e Bacon. Degas pintou Manet durante todo o inverno de 1868-69, e depois de presentear o amigo com o quadro, o encontrou, dias depois, jogado num canto com um corte desferido pelo próprio Manet. O que ele viu na pintura? Essas rupturas de amizades, mesmo remediadas em algum momento, nunca foram superadas por completo. Não disputavam apenas no campo artístico, mas também por supremacias mundanas e pelo domínio do amor e amizade.

No nosso mundinho, longe das grandes histórias dos artistas, acompanhamos também situações que nos remetem ao tema. A rivalidade masculina ou feminina pressupõe certa simetria. É necessário que a pessoa esteja em posição próxima a sua, ou pense estar. Idades aproximadas, trabalhos parecidos e um certo sentimento de ameaça. Para alguém vencer o outro deve perder. O que significa a ideia de competir imaginariamente para barganhar o amor do mestre, a prioridade do grupo? Poderíamos pensar, por exemplo, que uma amiga que tem essa verve, estaria revelando uma profunda afeição pelo modo como você se situa na vida? A ideia da busca por um traçado como o seu é uma dialética entre amor e ódio, inveja e rivalidade?

Como feministas, ensinamos as mulheres a se protegerem dos homens, mas quem vai ensiná-las a se protegerem de outras mulheres? Foi essa uma das perguntas feitas pela Manuela Xavier, psicanalista, com forte influência no instagram e youtube, ao falar sobre rivalidade feminina no feminismo. A primeira vez que a vi, ela fazia um vídeo esclarecedor sobre a sociedade fálica, belíssima, com unhas enormes, maquiada e tomando vinho tinto. Achei maravilhosa! Quanto mais Manu fazia sucesso, mais ela começava a se “desenfeitar”: tirou as unhas postiças, começou a tomar cafés artesanais, apareceu descabelada e sem maquiagem. Depois Manu sumiu.

Após 2 meses fora das redes, ela voltou com suas unhas enormes, maquiada, louríssima e mais afiada que nunca e diz que sofreu Trashing. Sim, ela fala que adoeceu, quando as feministas de plantão começaram um movimento de desqualificação contra ela, enquadrando-a como liberal, ou seja, qualquer mulher que esteja fora da cartilha extraoficial do feminismo, diz ela, recebe a pecha de LIBERAL! Fora desse campo, diz Manu, “é possível você dizer que não gosta de uma mulher porque ela puta, invejosa etc, mas dentro do feminismo não dá pra dizer isso. Como se faz então? Uma desqualificação que é muito sutil, porque não há uma acusação objetiva, mas formas múltiplas de detonar a sua fala como pensadora “verdadeira” do feminismo, negando as suas particularidades como mulher.

Ouvi de duas alunas na sala de aula, semana passada, como elas têm sido perseguidas em seus espaços de trabalho das formas mais vis possíveis. Uma delas, chorou bastante ao dizer que o meu papel como professora, com os textos que passo em sala e também os que escrevo, tem sido muito importante e se eu tinha noção disso. Segundo ela, estaria possibilitando uma profunda reflexão sobre as diversas opressões que estão situadas, e no caso dela, a dor maior é que sofreu todo tipo de ofensa, fofocas e tentativas de rebaixá-la por mulheres, em seu ambiente do trabalho, quando estava grávida. Essa narrativa foi uma das coisas mais emocionantes que já ouvi. E não sou de ferro, chorei em plena aula com elas. 

Tenho consciência que trago aqui temas indigestos, outros provocantes e cheios de humor que as feministas desconfiadas podem achar que é pra ganhar likes, mas as leitoras atentas percebem que estão repletos do que precisa ser dito rindo, pra não chorar! 

Gostaria de dizer que meu casamento não é perfeito (detesto essa coisa de que marido de feminista é o único sem defeitos), e nem sou exemplo pra ninguém. Mas enquanto eu tiver esse espaço e outros, tentarei levá-las a pensar comigo de um lugar de contestação, de insubmissão e de acolhimento. Nem todas as mulheres têm sororidade, são justas e amigas, mas eu escrevo porque muitas outras são! Quantas novas amigas e pessoas queridas têm dado retornos fantásticos! E vamos com quem topa a parada, e desculpem, por mais um tema difícil, mas é assim que a gente vai se fortalecendo, pensando muito e dando estridentes gargalhadas.

Paula Brandão

Doutora em Sociologia pela UFC, e professora do curso de Serviço Social (Uece). É pesquisadora na área de gêneros, gerações e sexualidades. Membro do Laboratório de Direitos Humanos e Cidadania (Labvida) e integra o Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH).